TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

546 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL diretos, sendo a exclusão da compensação “a si próprio” o que maioritariamente terá resultado do Diploma e, eventualmente, estado presente na mente do Legislador. Todavia, a regra geral – da qual, obviamente, o próprio Estado não foi o único destinatário –, deduzida da evidência de apresentar o artigo 2.º do Decreto- -Lei n.º 195-A/76 a indisfarçável estrutura de uma exceção, foi (a regra geral) que a abolição da enfiteuse se realizaria sem indemnização alguma a todos os senhorios pessoas coletivas e aos senhorios pessoas singulares, que auferissem rendimento mensal superior ao salário mínimo nacional [o qual, em março de 1976, corres- pondia a 4 000$ (valor fixado pelo Decreto-Lei n.º 292/75, de 16 de junho, e que viria a ser aumentado em 1977 para 4 500$)].  Embora este aspeto da abolição (referimo-nos à ausência de previsão de uma indemnização ao senhorio) não disponha – nunca dispôs, aliás – de credencial constitucional alguma, logramos perceber o seu significado profundo, e explicar o porquê da sua ocorrência, no contexto histórico da existência e da abolição da enfiteuse. Para este efeito importa aprofundar a compreensão das peculiaridades deste direito real abolido em 1976. 2.5.1. Traduz-se – traduzia-se – a enfiteuse numa dissociação, no quadro de um determinado direito de propriedade fundiária, de duas situações dominiais: a direta, na titularidade do senhorio, e a útil, atribuída ao enfiteuta (artigo 1491.º do Código Civil). Correspondeu o caráter perpétuo da situação – enunciado no trecho inicial do artigo 1492.º, n.º 1, do Código Civil: “[a] enfiteuse é de sua natureza perpétua […]” –  ao elemento identitário original da enfiteuse, e à incidência que a diferenciou, na sua origem milenar, de outras figuras que apresentavam traços similares, quanto à dissociação entre o uso e a titularidade (cfr. Paul Jörs, Wolfgang Kunkel, Derecho Privado Romano , Barcelona, 1937, pp. 216/217). Existe, todavia, uma impor- tante nuance nesta afirmação de perpetuidade, que nos é dada logo pelo segundo trecho do mesmo n.º 1: “[a] enfiteuse é de sua natureza perpétua, sem prejuízo do direito de remição, nos casos em que é admitido”. É esta nuance que suporta a asserção, presente na nossa Doutrina, de ter passado a constituir essa perpetui- dade, com a previsão da remição em favor do enfiteuta, uma característica apenas tendencial da figura: “[n] a primitiva regulamentação do Código de 1867, a perpetuidade era característica essencial da enfiteuse. Atualmente, a perpetuidade é mera característica tendencial, uma vez que se admitiu a remição, em favor do enfiteuta, através do pagamento de 20 foros (artigos 1511.º e 1512.º)” (José de Oliveira Ascensão, Direitos Reais , Coimbra, 1978, reimpressão da 2.ª edição de 1971, p. 484). Sublinhamos a significativa ligação deste instituto, ocorrida a culminar um longo período da sua evolução, à previsão da faculdade, conferida ao enfiteuta, de remir (sinónimo de resgatar) o prazo (o prazo é o prédio na terminologia legal, cfr. artigo 1491.º, n.º 2, do Código Civil), sendo que assim identificamos um elemento cen- tral da figura, adquirido na sua dinâmica histórica, e que poderemos qualificar como tributário de uma espécie de “pulsão autodestrutiva” do próprio instituto, correspondente a uma fase tardia da sua evolução. Com efeito, como veremos, existiu na abolição da enfiteuse, no contexto histórico de 1976, mas refletindo um percurso muito anterior, uma sugestiva associação da ideia de remição de um foro, à libertação (abolição; as palavras – a intensidade destas – assume neste contexto um valor significativo) do agricultor de um tipo de ligação à terra, cuja essência representava uma forma serôdia de servidão pessoal, como se intui da interposição da figura do senhorio na ligação do agricultor à terra, e da natureza perpétua dessa ligação pessoal. Conforme se refere num texto, com mais de um século, particularmente importante para a caracteri- zação da funcionalidade da enfiteuse na origem histórica da propriedade privada da terra (Gaillard Thomas Lapsley, “The Origin of Property in Land”, in The American Historical Review , Vol. 8, n.º 3, April , 1903, pp. 426/448, acedido em JSTOR, www.jstor.org/stable/1832728 ) : “[…] Estavam em curso um conjunto de mudanças na propriedade fundiária desde o começo do século II da nossa era. O escravo enquanto coisa [ the chattel slave ] transformou-se num servo do prédio [ a predial serf ], ligado ao solo e devendo prestar ao seu senhor [ owing is master ] determinados serviços, previamente estabelecidos, e fornecer-lhe bens em espécie.

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