TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

544 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL os inconvenientes daí resultantes, como sejam a impossibilidade de acesso ao serviço de eletricidade e ligações à rede pública de água, situação que acarreta graves prejuízos.’ (Carlos Matias do PRD). Com as alterações introduzidas no Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, pela Lei n.º 22/87, de 24 junho, o legislador esclareceu que, mesmo após ter sido abolida e constitucionalmente proibida a enfiteuse, o direito do enfiteuta podia ser adquirido por usucapião, desde que se reunissem as condições aí exigidas, designadamente que em 16 de março de 1976 já tivessem decorrido os prazos necessários para a aquisição daquele direito por usucapião, donde sequencialmente resultava, nos termos do artigo 1.º daquele diploma, a consolidação da propriedade plena na esfera jurídica do enfiteuta. Esta opção traduz um reconhecimento da importância da figura da posse na ordenação do domínio sobre os bens, como peça fulcral duma ordenação dominial provisória que supre as lacunas inevitáveis da ordenação definitiva e que mais não é do que ‘uma via de recurso para impedir de momento as soluções de continuidade no funcionamento dos direitos que constituem os mecanismos de tutela jurídica que o Direito seleciona para o domí- nio sobre os bens – até se restabelecer, por conseguinte, esse funcionamento completo e em ordem, além disso, a esse funcionamento completo.’ (Orlando de Carvalho, em ‘ Direito das coisas ’, pp. 233-234, da obra coordenada por Francisco Liberal Fernandes, Maria Raquel Guimarães e Maria Regina Redinha, edição de 2012, Coimbra Editora). As pessoas que se encontravam nas condições exigidas na data em que foi abolida a enfiteuse também elas devem ser reconhecidas como verdadeiros enfiteutas, para que lhes seja transmitido o domínio direto sobre as parcelas de terreno em causa, consolidando-se na sua esfera patrimonial a propriedade plena sobre essas parcelas. Mais tarde, o legislador viria a introduzir alterações aos pressupostos estabelecidos para a aquisição por usuca- pião do direito do enfiteuta, através da Lei n.º 108/97, de 16 de setembro, perante algum inêxito na regularização das situações de enfiteuse não tituladas, procurando facilitar ainda mais essa aquisição. Faz-se notar, mais uma vez, que a questão de constitucionalidade que aqui importava discutir era apenas a que recaía sobre a possibilidade de alguém poder vir a adquirir, por usucapião, um direito que, entretanto, havia sido abo- lido e constitucionalmente proibido, e não a da descaracterização do modo de aquisição de um direito real por usuca- pião que poderia ter resultado do estabelecimento de pressupostos específicos para a aquisição do direito do enfiteuta. Ora, se é verdade que a proibição constitucional da recuperação da figura da enfiteuse, que já tinha sido abolida pelo Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, visou impedir não só que se constituíssem novas relações enfitêu- ticas, mas também que se mantivessem as existentes, o facto de se permitir a aquisição por usucapião do direito de enfiteuse a quem, à data da abolição (16 de março de 1976), tivesse uma posse correspondente ao exercício desse direito com uma duração suficiente para essa aquisição (desde pelo menos 15 de março de 1946, como esclareceu a Lei n.º 108/97 de 16 de setembro), não só não contraria tal proibição, como visa dar-lhe cumprimento. Na verdade, do mesmo modo que para impedir a subsistência das relações de enfiteuse existentes no ordena- mento dominial definitivo registral se determinou a transferência automática do domínio direto para o titular do domínio útil, consolidando, assim, a propriedade plena na esfera jurídica deste, justifica-se que tenham igual trata- mento aquelas situações possessórias, inseridas no ordenamento dominial provisório, correspondentes ao exercício do direito do enfiteuta que, à data da abolição desta figura, já tinham uma duração que permitia a este a aquisição desse direito por usucapião, mediante simples declaração de vontade nesse sentido, isto é que se encontravam aptas a ingressar no ordenamento definitivo. Na verdade, essa solução não só se justifica, por identidade de razões, como é a adequada à promoção da extinção das relações enfitêuticas de facto, através do acesso dos enfiteutas à propriedade plena, dando, assim, cumprimento à proibição contida no artigo 96.º, n.º 2, da Constituição. E não se diga que ela põe em causa o princípio da confiança, na vertente da proibição da retroatividade, inerente ao modelo do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição, quando permite a aquisição de uma forma dominial que já não é reconhecida pelo ordenamento jurídico, sendo até proibida, porque a norma em análise apenas permite o reconhecimento dessa aquisição nos casos em que, no momento em que se procedeu à abolição da enfi- teuse, estavam já reunidas todas as condições para que essa aquisição ocorresse, efetuando-se esse reconhecimento, não para

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