TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

543 acórdão n.º 819/17 Deste modo pretendeu-se banir uma “forma jurídica que fizera impender sobre milhares de pequenos agricul- tores encargos e obrigações que não correspondiam senão a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal” (Rui Marcos, em ‘O regresso da enfiteuse’, em O sistema contratual romano. De Roma ao direito atual , edição especial do Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, de 2010). Foi nessa linha que a Constituição de 1976 (artigo 101.º, n.º 2, da versão original que corresponde ao atual artigo 96.º, n.º 2), ao dispor sobre as formas de exploração de terra alheia, determinou a proibição dos regimes de aforamento, assim designando a enfiteuse (artigo 101.º, n.º 2, da versão original). Considerou-se que a enfiteuse era um instituto que mantinha vínculos feudais e que permitia, a título tendencialmente perpétuo, que os proprie- tários absentistas beneficiassem, através do pagamento do foro, da exploração da terra pelo enfiteuta, o que resul- tava numa relação de exploração do homem pelo homem, a que se opõe a ideia da dignidade da pessoa humana vertida no artigo 1.º da Constituição. A proibição constitucional da recuperação da figura da enfiteuse que já tinha sido abolida pelo Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, visou, pois, impedir não só que se constituíssem novas relações enfitêuticas, mas também que se mantivessem as existentes. O Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, que antecipadamente executou esta diretriz constitucional, na sua redação, teve apenas em consideração aqueles que à época eram titulares registados de um direito ao domínio útil, em razão de relações de enfiteuse já constituídas, limitando-se a determinar que as correspondentes operações de registo, com a alteração da propriedade, seriam efetuadas oficiosamente (artigo 1.º, n.º 3), não contemplando uma realidade em que avultava a existência de inúmeros direitos enfitêuticos não registados, com origem em con- tratos verbais. Esta realidade veio mais tarde a ser posta a nu pelas reivindicações dos foreiros de Salvaterra de Magos, tendo a Lei n.º 22/87, de 24 junho visado dar uma resposta a esse movimento, admitindo o registo da enfiteuse com fundamento em usucapião reconhecida mediante justificação notarial ou judicial (artigo 1.º, n.º 4), desde que o prazo necessário para essa aquisição tivesse já decorrido em 16 de março de 1976 [artigo 1.º, n.º 5, alínea a) ], data em que foi abolida a enfiteuse. Apesar desta solução já poder resultar da aplicação das regras gerais da posse, reconheceu-se especificamente que era necessário dar também cobertura às relações possessórias enfitêuticas, permitindo-se que quem tivesse uma posse correspondente ao exercício do direito do enfiteuta, apesar dessa posse não se encontrar titulada por um contrato escrito registado, pudesse, através da invocação do instituto da usucapião, ver reconhecida a sua qualidade de enfiteuta com a subsequente transmissão do domínio direto do prédio para a sua esfera patrimonial, passando aquele a ser o titular da propriedade plena. Como se disse na altura da discussão deste diploma na Assembleia da República: ‘Esta iniciativa legislativa visa viabilizar o processo de extinção dos aforamentos nos casos em que não existe contrato escrito, mas em que o direito do foreiro, não obstante não resultar de contrato sob forma escrita, foi adquirido por usucapião. Procura-se com ela permitir que os foreiros nesta situação não fiquem impedidos de beneficiar da legislação de 1976, que extinguiu os foros’ (Álvaro Brasileiro do PCP); ‘Pese embora a sua boa intenção de acabar de vez com o aforamento, escaparam à alçada deste diploma (o Decreto-Lei n.º 195-A/76) aquelas situações em que os foreiros, na ausência de contrato escrito, não puderam perante as conservatórias de registo predial, exibir título de enfiteuse. Assim não obstante o inequívoco substrato de relação contratual, perduraram alguns casos que são o objeto do presente diploma’ (José Frazão do PS); ‘A concretização das medidas previstas no Decreto-Lei n.º 195-A/76 veio a ter na prática, por vezes, grandes dificuldades quando a enfiteuse não foi constituída por contrato mas sim por prescrição aquisitiva/usucapião. Foreiros vieram a encontrar, neste caso, dificuldades inultrapassáveis para procederem às operações de registo atrás referidas, mantendo-se, transcorridos que foram mais de dez anos, numa situação estranha. Sendo de facto possui- dores da terra, tendo a seu lado o direito substantivo, não conseguem ver reconhecidos os seus direitos, com todos

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