TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
542 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Daí que tenha discordado que o presente Acórdão tenha aceite a formulação unificada como objeto de fiscaliza- ção, tendo-a julgado inconstitucional, com fundamento apenas na falta de atribuição, em termos gerais, ao titular do domínio direto, de um direito de indemnização pela transmissão forçada. Da opção por esta abordagem unitária resultou que a constituição do direito de enfiteuse por usucapião ficou também indevidamente abrangida pela decisão de inconstitucionalidade, uma vez que o fundamento desta – a falta de atribuição do direito de indemnização – não lhe é imputável, dizendo apenas respeito à norma que procede à transferência ope legis do domínio direto para o titular do domínio útil. Por esta razão, se concordei que a norma extraída do disposto nos artigos 1.º, n.º 1, e 2.º, do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, segundo a qual a abolição da enfiteuse sobre os prédios rústicos se faz através da transferência do domínio direto para o titular do domínio útil, sem que se atribua, em termos gerais, ao titular do domínio direto, um direito de indemnização por essa transmissão forçada, é inconstitucional, por violação do disposto no artigo 62.º, n.º 2, da Constituição, entendi que é necessário efetuar uma fiscalização autónoma da norma extraída dos n. os 4 e 5, do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, na redação das Leis n. os 22/87, de 24 de junho (o n.º 4), e 108/97, de 16 de setembro (o n.º 5), segundo a qual é possível reconhecer neste momento a constituição de um direito de enfiteuse por usucapião, o que o presente Acórdão não faz. 2. A decisão recorrida defendeu que admitir-se a constituição da enfiteuse, por usucapião, estabelecendo assim, retroativamente, um eio de aquisição de um direito constitucionalmente proibido, violava essa proibição. Saliente-se que a inconstitucionalidade apontada não incide sobre uma leitura do disposto no artigo 5.º do Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, na redação da Lei n.º 108/97, de 16 de setembro, segundo a qual os pressupostos da aquisição por usucapião do direito do enfiteuta seriam menos exigentes que os pressupostos gerais desse modo de aquisição de direitos, cobrindo situações em que o corpus e o animus da posse não res- peitavam necessariamente ao exercício do domínio útil do enfiteuta, mas sim ao gozo próprio de uma relação arrendatícia (vide, sobre esta questão, Gomes Canotilho e Vassalo de Abreu, em Enfiteuse sem extinção. A propósito da dilatação legal do âmbito do instituto enfitêutico , na Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 140.º, pp. 206 e seguintes, e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de outubro de 2014, proferido no processo n.º 5658/07.7TBALM.L2.S1), a qual não estava em causa na situação sub iudice; a questão de constitucionalidade que aqui se coloca é tão só a de saber se a possibilidade de alguém, atualmente, ainda poder adquirir um direito desse tipo, por usucapião, viola qualquer parâmetro constitucional, designadamente a proibição constante do n.º 2 do artigo 96.º da Constituição. A enfiteuse, com origem no direito romano e com prevalência na Idade Média, perdurou no nosso ordena- mento jurídico, através da sua consagração, primeiro no Código de Seabra e depois, após acesa discussão sobre a sua utilidade durante os trabalhos preparatórios, no Código Civil de 1966, com algumas alterações de regime. Após a Revolução de abril de 1974, o Decreto-Lei n.º 195-A/76, de 16 de março, diploma pré-constitucional, viria a abolir a enfiteuse, com a seguinte fundamentação: ‘Através da forma jurídica da enfiteuse têm continuado a impender sobre muitas dezenas de milhares de pequenos agricultores encargos e obrigações que correspondem a puras sequelas institucionais do modo de produção feudal. Com efeito, encontram-se ainda hoje extremamente generalizados os foros, podendo referir- -se que só o Estado, segundo estimativas feitas pela Direção-Geral da Fazenda Pública, é titular de domínios diretos que atingem cerca de 400000, ultrapassando o seu valor 1 milhão de contos. Uma política agrária orientada para o apoio e a libertação dos pequenos agricultores não pode deixar de integrar a liquidação radical de tais relações subsistentes no campo.’ O legislador ordinário antecipou-se à aprovação do texto constitucional e, tendo por objetivo a emancipação dos enfiteutas, procedeu à transferência ope legis do domínio direto para o titular do domínio útil, concentrando na esfera jurídica deste a propriedade plena sobre os prédios sujeitos àquele regime, através da “expropriação” do domínio direto que cabia ao senhorio, em favor do enfiteuta.
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