TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
529 acórdão n.º 819/17 O que a Constituição proíbe é, desde logo, a ablação do direito de propriedade, sem que os atos que a con- substanciam estejam suficientemente ancorados em outras normas ou princípios constitucionais dos quais resulte a necessidade da ablação da propriedade. […] À tutela do direito de propriedade consagrada na Lei Fundamental não subjaz, portanto, uma conceção abso- luta deste direito – a extensão da proteção é necessariamente limitada pela complexa ordem de valores constitu- cional. O que a este propósito transparece da Constituição é um novo conceito do direito de propriedade que transcende as velhas conceções do liberalismo oitocentista, como se salientou no Acórdão n.º 76/85 (…). Ora, esta outra conceção pode considerar-se relevante nos casos de propriedade sobre os meios de produção – como acontece na situação em apreço – pelas seguintes razões. Em primeiro lugar, quando está em causa a propriedade no setor produtivo do país, é nítido o relevo da dimensão social do direito de propriedade privada porque a utilização racional dos elementos produtivos (nomea- damente, de um elemento radicalmente escasso, porque não reprodutível, como é o caso da terra) tem efeitos que de algum modo ultrapassam a esfera de interesses do seu proprietário. Os elementos produtivos são bens geradores de rendimentos e de desenvolvimento económico, cujos benefícios não são apropriados apenas pelo proprietário, mas se estendem a toda a coletividade. Essa circunstância leva também a que a ordenação da propriedade dos meios de produção – observando embora as garantias constitucionais do direito de propriedade – tenha consequências coletivas em termos de distribuição do rendimento e, portanto, de justiça social. Ambos os aspetos referidos – a promoção do desenvolvimento económico e da justiça na distribuição do rendimento – estão claramente incluídos entre as tarefas fundamentais do Estado, consagradas no artigo 9.º da Constituição, nomeadamente, na sua alínea d) . Em segundo lugar, a especial densidade que o nosso texto constitucional confere à estrutura económica do país leva a que a chamada ‘Constituição Económica’ seja uma fonte importante de limitações ao alcance do direito de propriedade. Tais limitações podem assumir especialmente relevância no que toca à propriedade rural, dado que os artigos 93.º a 98.º espelham um objetivo constitucional de transformação da realidade agrícola e florestal, admi- tindo, explicitamente, constrangimentos à propriedade fundiária, incluindo a forma extrema de privação total. A interação entre a constituição económica e a garantia da propriedade foi profusamente analisada por este Tribunal […] a propósito da remição da colonia – questão, de algum modo, semelhante à que aqui se analisa. De entre a jurisprudência em questão, destaca-se o seguinte trecho do Acórdão n.º 404/87 […]: ‘[A pretensa violação da garantia do direito de propriedade pela remição da colonia] é afastada quando se considere tal garantia, consignada no artigo 62.º da Constituição, não isoladamente, mas no contexto global da Lei Fundamental. Na verdade, se essa garantia exclui em princípio, atenta a sua mesma natureza e o seu núcleo essencial (cf., de resto, artigo 62.º, n.º 2), a possibilidade de um particular obter coativamente de outro a alienação em seu favor de coisa pertencente ao primeiro (e a uma hipótese deste tipo, há de reconhecer-se, se reconduz o direito de remição em causa), ela não pode, todavia, deixar de compaginar-se com os princípios constitucionais dos quais decorrem mais ou menos extensos limites, ou a possibilidade de mais ou menos extensas restrições, ao seu conteúdo e alcance – e tais princípios dão suficiente cobertura à restrição ou limite em que se traduz o direito de remiço da terra concedida ao colono-rendeiro. Por outras palavras: o direito de propriedade só se acha garan- tido, como se diz no próprio artigo 62.º, n.º 1, «nos termos da Constituição», mas estes termos autorizam aquela restrição ou limite a esse direito. Que é assim resulta logo do sentido geral das normas e princípios constitucionais relativos à reforma agrária, apontando eles, como apontam, para um profunda «transformação das estruturas fundiárias» e para a transferên- cia progressiva da posse útil da terra para aqueles que a trabalham, e resulta depois, especificamente, do artigo 101.º, n.º 2, que na sua redação primitiva determinou a extinção do regime de colonia e na atual redação o proíbe [artigos 93.º, n.º 1, alínea b) , e 96.º, n.º 2, do atual texto da Constituição]. Nesta disposição, atenta aquela ideia genérica inspiradora da reforma agrária e a natureza das situações constituídas através do contrato de colonia, não pode, com efeito, deixar de ver-se, no mínimo, uma base constitucional bastante para o legislador conceder aos colonos-rendeiros o direito de porem termo ao contrato de colonia através da remição da propriedade da terra onde
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