TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
402 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Ainda que assim não se entenda, sempre a medida, baseada unicamente na celeridade e na eficácia, representa uma carga excessiva para os direitos dos impugnantes ao acesso aos tribunais e à tutela efetiva (artigo 20.º, n.º 1 e n.º 5, da CRP), bem como para o princípio da presunção de inocência (artigo 30.º, n.º 2, da CRP) porque aplicada por uma entidade administrativa, num processo de estrutura inquisitorial, e porque, constituindo este o aspeto decisivo no juízo de ponderação, tendo caráter automático, não permite a graduação da coima nem qualquer consideração pela situação económica dos impugnantes. São válidas a este propósito as considerações vertidas nos Acórdãos n. os 674/16 e 675/16, segundo as quais o que está em causa nestes processos não é meramente um direito ao recurso ou os efeitos do recurso de uma decisão judicial, mas sim um direito de ação ou de acesso aos tribunais. Em consequência, a norma cuja aplicação foi recusada pelo acórdão recorrido, o artigo 67.º, n.º 5, do Decreto-Lei n.º 126/2014, na interpretação normativa aqui em causa – que inclui a impossibilidade de graduação do valor da caução ou de dispensa desta, em situação de incapacidade financeira do impugnante – viola o princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32.º, n.º 2, da CRP e os direitos de acesso à justiça e à tutela efetiva, consagrados no artigo 20.º, n.º 1 e n.º 5, da CRP, em conjugação com o princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP, padecendo, portanto, de inconstitucionalidade material. 4. Importa ainda referir, a propósito do tema, que estamos perante um diploma legal referido às funções da entidade reguladora da saúde e à tutela de bens jurídicos que se revestem, nalguns tipos contraordenacio- nais, de dignidade penal; as coimas podem ser de montante muito elevado e os processos em que estas são aplicadas não gozam de estrutura acusatória. A inclusão no artigo 32.º da CRP de uma menção expressa aos direitos de audiência e defesa do arguido em processo contraordenacional consubstancia um facto que, à luz de uma interpretação sistemática, vem afastar o processo de contraordenação do âmbito administrativo e integrá-lo no âmbito do processo penal. Apontando neste sentido, no plano infraconstitucional, o artigo 41.º, n.º 1, do RGCOC expressamente estatui que o regime subsidiário aplicável é o do processo criminal. Em consequência, nenhum dos fatores de hermenêutica que se impõem ao julgador, seja o elemento histórico, literal ou sistemático, consentem a conclusão de que é no plano do direito administrativo que se deve procurar respaldo para a compreensão da teleologia da norma aqui questionada, devendo, antes, tal labor interpretativo circunscrever-se aos domínios do direito penal e processual penal. O direito contraordenacional é hoje chamado a desempenhar uma função de relevo no âmbito do direito regulador, o que implicou uma gradual transformação substancial da sua natureza. Os bens jurídico-económicos que na atualidade são valorados como os de maior relevo para a organi- zação e ordenação económico-social deixaram de ser aqueles que os tipos incriminadores do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, procuravam tutelar. O paradigma contraordenacional vigente caracteriza-se pela atribuição a este ramo do direito de um papel de direta tutela dos mais importantes bens jurídicos da nossa constituição económica, sobretudo, em relação às mais severas ofensas que lhe podem ser dirigidas, concorrendo com o direito penal económico na sua missão de proteção dos interesses vitais da organização económica constitucionalmente postulada. Este atual paradigma obriga a uma recompreensão do conteúdo do facto punível contraordenacional e das finalidades das sanções contraordenacionais, abandonando-se ou reformulando-se aquelas conceções distintivas entre direito penal e direito contra-ordenacional baseadas numa suposta neutralidade ética da contraordenação (Nuno Brandão, Crimes e Contra-Ordenações: da Cisão à Convergência Material , Coimbra, 2016, p. 482). É precisamente no direito regulatório que nos confrontamos com as chamadas «grandes contraordena- ções», num contexto em que o direito contraordenacional constitui o direito sancionatório de referência dos mais importantes sectores da sociedade e em que os comportamentos sancionados, no plano substancial,
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