TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017

400 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL conhecido apenas desta, mas também da constitucionalidade material. E tal juízo não seria inútil. É que a inconstitucionalidade orgânica, referindo-se a uma questão de repartição de competências entre Governo e Assembleia da República, invalida a totalidade do preceito legal, invalidade que pode ser sanada por uma posterior lei de autorização. Contudo, a função do Tribunal Constitucional, mais do que fiscalizar a obser- vância das regras de competência dos órgãos de soberania, consiste na proteção dos direitos fundamentais dos cidadãos através de juízos de inconstitucionalidade sobre normas ou interpretações normativas que vio- lem normas ou princípios constitucionais, dos quais se deduzam direitos fundamentais. Importa, portanto, informar os operadores judiciários, e indiretamente o legislador, de dimensões normativas que não podem ser aceites por não serem conformes com a Lei Fundamental. Reportando-se, neste caso, o juízo de inconsti- tucionalidade material a uma interpretação normativa determinada, conforme decorre do acórdão recorrido, o seu âmbito não abrange a totalidade da norma mas apenas uma dimensão ou segmento normativo, sobre o qual importa elucidar os cidadãos e responder aos tribunais comuns,  que têm recusado, em vários processos semelhantes, a sua aplicação, no exercício dos seus poderes no âmbito do controlo de difuso de constitucio- nalidade que carateriza o nosso sistema de fiscalização concreta. A utilidade deste juízo é evidente para que os operadores judiciários conheçam as dimensões normativas inconstitucionais e não as apliquem, e para que a Assembleia da República, ao sanar a inconstitucionalidade orgânica, possa também alterar o conteúdo da norma, tornando-a conforme às normas constitucionais que consagram direitos fundamentais. 2. Afirmada a pertinência e a utilidade de se conhecer também da constitucionalidade material, importa definir qual a interpretação normativa em causa. Esta reside no condicionamento do efeito suspensivo da impugnação judicial à demonstração, pelo recorrente, de que a execução da decisão lhe causa prejuízo con- siderável e à prestação de caução em substituição da coima aplicada, independentemente da sua situação de carência económica. Esta interpretação normativa decorre do teor literal do preceito e da fundamentação da decisão recorrida, sendo reforçada pela circunstância de, no caso concreto, a impugnante ser uma pessoa singular, que, diferentemente das grandes empresas que operam no mercado da saúde, não tem capacidade financeira para o pagamento da coima (fls. 124 a 136). A interpretação normativa aqui em causa diz respeito a uma dimensão que implica o automatismo do pagamento de uma caução equivalente ao valor da coima (em sua substituição), como condição do efeito suspensivo do recurso, sem qualquer margem de apreciação judicial na determinação concreta do montante da caução, abrangendo necessariamente a desconsideração pela eventual situação de carência financeira do arguido. Com efeito, resulta direta e necessariamente da forma como o tribunal interpretou a norma, que ela se aplica independentemente de o visado ter ou não condições financeiras para tal. Assim, a fundamentação do tribunal a quo, objeto do presente recurso, passa por um juízo negativo formulado sobre a possibilidade de ponderar a situação económica do recorrente. Para além disso, a impugnante, perante o tribunal a quo, alegou expressamente a sua incapacidade financeira.   Sendo assim, o valor da aludida caução substitutiva redundará invariavelmente no pagamento ante- cipado da contraordenação aplicada (ou execução antecipada), emergente da decisão de uma autoridade administrativa não transitada em julgado, proferida num processo de características inquisitórias em que não se verifica uma igualdade de armas entre as partes. 3. A ratio subjacente ao efeito devolutivo do recurso reside na eficácia da sanção e na finalidade de evitar comportamentos dilatórios ou atuações excessivamente litigantes, ligadas ao facto de nos setores económi- cos, objeto do poder sancionatório das entidades reguladoras, operarem normalmente empresas de grande dimensão e poder económico. Contudo, independentemente do que se pense em relação ao regime adequado para as empresas de elevado poder económico, que podem aproveitar-se da sua posição dominante para abusarem do seu poder em relação aos consumidores, sempre serão distintos os casos em que o sujeito condenado seja, como no caso sub judice , uma pessoa singular que invoca a sua insuficiência económica para o pagamento da caução.

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