TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
398 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL legislador contraordenacional será chamado a concretizar dentro de um poder de conformação mais aberto do que aquele que lhe caberá em matérias de processo penal. Com efeito, este Tribunal vem sustentando que crime e contraordenação não são infrações substancial- mente equivalentes, quer na perspetiva dos bens tutelados, quer na perspetiva das reações sancionatórias que a sua prática determina: no primeiro caso, está em causa a «ofensa de bens e valores tidos como estruturantes da sociedade», que desencadeia, pela sua gravidade, «um complexo processo com vista a determinar o seu autor e a responsabilizá-lo criminalmente com penas (…) que podem implicar, no limite, a privação da liberdade do arguido; nada disso se passa com as contraordenações que, sendo ilícitos, não comprometem os alicerces em que assenta a convivência humana e social, e, dando lugar à aplicação de coimas, não se dirige, através delas, qualquer juízo de censura ético-jurídica à pessoa do agente mas uma simples advertência de alcance comportamental, cuja garantia é apenas e só de ordem patrimonial» (Acórdão do Tribunal Consti- tucional n.º 612/14). 12. Tendo sido questionada pelo tribunal recorrido a constitucionalidade material da norma, deve dizer-se que, independentemente do juízo a proferir nesta sede e da concreta configuração da interpretação normativa abrangida por esse juízo, a norma agora em crise, por integrar um Decreto-Lei do Governo não autorizado pela Assembleia da República, apresenta um outro vício – a inconstitucionalidade orgânica por violação das regras de competência dos órgãos de soberania. Dispõe o artigo 79.º-C da LTC, sob a epígrafe «Poderes de cognição do Tribunal», que o Tribunal só pode julgar inconstitucional ou ilegal a norma que a decisão recorrida, conforme os casos, tenha aplicado ou a que haja recusado aplicação, mas pode fazê-lo com fundamento na violação de normas ou princípios constitucionais ou legais diversos dos invocados. Ao abrigo da parte final deste preceito, vem este Tribunal perfilhando jurisprudência no sentido de que os seus poderes cognitivos não se encontram limitados pela qualificação jurídica do vício imputado à norma, nem pelo concreto fundamento jurídico-constitucional invocado, nenhum óbice existindo à apreciação da norma questionada em função de normas ou princípios constitucionais diversos daqueles que foram invoca- dos (cfr. Acórdãos n. os 33/96 e 664/97). Por conseguinte, nenhum entrave existe à apreciação de uma inconstitucionalidade orgânica, ainda que não invocada. Vejamos, pois. 12.1. A norma em causa, na parte em que consagra o princípio do efeito devolutivo da impugnação judicial e condiciona a obtenção de efeito suspensivo do recurso à prestação de caução e verificação de um prejuízo considerável para o arguido, constitui uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias, nomeada- mente, do princípio da presunção de inocência estatuído no artigo 32.º, n.º 2, da CRP. O princípio da presunção de inocência impõe os seguintes corolários: proibição de inversão do ónus da prova em detrimento do arguido; preferência pela sentença de absolvição contra o arquivamento do pro- cesso; exclusão da fixação da culpa em despachos de arquivamento; não incidência de custas sobre arguido não condenado; proibição de antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares; proibição de efeitos automáticos da instauração do procedimento criminal; natureza excecional e de última instância das medidas de coação, sobretudo as limitativas ou proibitivas da liberdade; princípio in dubio pro reu (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Volume I, Coimbra, 2007, p. 518). A jurisprudência europeia e a do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos têm procedido à aplicação do princípio da presunção de inocência em sede contraordenacional, tendo em conta as finalidades puniti- vas e dissuasoras das sanções impostas (cfr. Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH), acórdãos Öztürk c. Alemanha e Lutz c. Alemanha; acórdãos do Tribunal de Justiça, de 8 de julho de 1999, Hüls/Comis- são da União Europeia , C-199/92 P, Colect., p. I-4287, n. os 149 e 150, e Montecatini/-Comissão, C – 235/92 P, Colect., p. I-4539, n. os 175 e 176).
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