TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
235 acórdão n.º 618/17 II – Do mérito do recurso Tendo admitido o recurso, entendi que a norma cuja aplicação foi recusada pelo tribunal recorrido merecia um juízo de inconstitucionalidade. O motivo que me conduziu a esta posição foi o facto de a aplicação do regime da contumácia aos casos de conversão da pena de multa em prisão conduzir a que, nos casos da pequena criminalidade (p. ex. crimes rodoviários ou pequenos furtos, muitas vezes praticados por jovens carenciados), os sujeitos condenados a penas de multa, que não pagam, fiquem sujeitos a um regime de suspensão/interrupção da prescrição da pena, por tempo indeterminado, o que, dada a inércia do Estado na localização imediata do sujeito conde- nado, permite que este seja preso muitos anos depois da condenação, sem qualquer eficácia ressocializadora. Sendo o direito penal e processual penal, ramos do direito centrados na pessoa do arguido, presumido inocente, entendo que também a definição do estatuto jurídico do condenado deve estar sujeita a algumas garantias perante o Estado. A preocupação com o arguido não pode conduzir a que o «condenado», como é referido pela doutrina e pela jurisprudência, seja visto como «não-pessoa». Vejamos: A questão colocada foi a de saber se a aplicação do instituto da contumácia, em fase de execução da pena, ao sujeito condenado por pena de multa convertida em prisão subsidiária, restringe, ou não, de forma desproporcionada o direito do condenado à capacidade civil (artigos 26.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP). A propósito do instituto da declaração de contumácia, o Tribunal Constitucional (Acórdão n.º 7/87) declarou a inconstitucionalidade, por violação do artigo 30.º, n.º 4, da CRP, da restrição – automática e sem margem judicial de ponderação – à capacidade de requerer documentos, tendo sido a lei processual alterada em conformidade. Posteriormente, no Acórdão n.º 188/91, o Tribunal Constitucional decidiu que as demais restrições à capacidade civil – arresto de bens e anulabilidade de negócios jurídicos patrimoniais – não ofen- diam o direito à capacidade civil consagrado no artigo 26.º, n.º 1, da CRP, nem eram excessivas quando ponderadas à luz do princípio da proporcionalidade ínsito no artigo 18.º, n.º 2, da CRP. Contudo, neste aresto, referia-se o Tribunal Constitucional apenas aos efeitos do instituto da contumá- cia no quadro das penas de prisão principais e num contexto jurídico em que não estava ainda consagrado na lei que a declaração de contumácia suspendia o prazo de prescrição da pena por tempo indeterminado, pelo que este aspeto do regime jurídico da contumácia não foi considerado nestas decisões. Importa frisar que, na lei atual, dada a suspensão e interrupção do prazo de prescrição da pena enquanto vigorar a declaração de contumácia [artigos 125.º, n.º 1, alínea b), e 126.º, n.º 1, alínea b) , do Código Penal (CP)], os efeitos restritivos da capacidade jurídica inerente à declaração de contumácia prolongam-se por tempo indeterminado, não sendo o prazo máximo previsto no artigo 126.º, n.º 3, do CP aqui aplicável (note-se que a limitação ao efeito suspensivo da contumácia acolhida no artigo 120.º, n.º 3, do CP, intro- duzida pela Lei n.º 19/2013, de 21 de fevereiro, se aplica apenas à suspensão da prescrição do procedimento criminal, não da pena, cujo corpo legal não conhece uma disposição semelhante). Sendo assim, embora esteja no âmbito da liberdade de conformação do legislador restringir a capaci- dade jurídica através da contumácia no que diz respeito à anulabilidade dos negócios jurídicos patrimoniais, ao arresto, total ou parcial, dos seus bens e à proibição de obter documentos (tanto mais que nos encontra- mos na fase de execução da pena, após trânsito em julgado da sentença de condenação), o mesmo não se pode dizer acerca da suspensão e da interrupção dos prazos de prescrição. O efeito mais gravoso da contumácia (e que dela decorre automaticamente) para os condenados a pena de multa é a interrupção da prescrição da pena. É que será necessariamente diferente um sujeito ver a sua capacidade jurídica diminuída por um período de tempo limitado na lei ou ver a sua capacidade jurídica limitada por tempo indeterminado. A doutrina entende que o instituto da prescrição tem uma dupla natu- reza processual e substantiva (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português. Parte Geral, II, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra 1993, pp. 698 e seguintes) e que constitui uma norma processual penal material (cfr. Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral, 3.ª edição, 2016, pp. 212 e seguintes), que afeta, para
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=