TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 100.º volume \ 2017
113 acórdão n.º 786/17 A primeira característica é a natureza normativa do objeto, que se prende com o facto de o direito em causa incidir, primariamente, sobre um bem constituído por normas legais. Com efeito, o direito à assis- tência e justa reparação em caso de infortúnio laboral integra a classe dos direitos fundamentais a prestações normativas, ou seja, a que o legislador institua regimes jurídicos constitutivos de determinados bens, direitos que se traduzem, em primeira linha, num dever de ação legislativa do Estado. Em virtude dele, «[o Estado] está vinculado a prever, por via legislativa, a obrigação de reparação e a assistência…por parte da entidade patronal (ou de outra entidade que se lhe substitua)….» (Acórdão n.º 599/04). Trata-se, por natureza, de um direito de pendor positivo, correlativo de um dever estadual de legislar. A segunda característica é a ressonância histórica do conteúdo, que releva da circunstância de a revisão constitucional de 1997 ter consagrado um direito há muito protegido pela legislação laboral portuguesa. Ao reconhecer expressamente tal direito, o legislador de revisão teve por principal desiderato impedir o legisla- dor ordinário, no exercício da sua liberdade democrática de autorrevisão, de subverter um instituto jurídico- -laboral que tutela interesses com dignidade constitucional. Tal não significa que a Constituição prive o legis- lador ordinário de toda a liberdade de conformação política nesta matéria; o que se tornou explicitamente indisponível é a função de assistência e de reparação do trabalhador que a legislação vigente em matéria de infortúnio laboral vinha assegurando, sem prejuízo de relativa indiferença constitucional no que diz respeito aos meios e formas usadas para o efeito. Desta dupla particularidade do direito à assistência e justa reparação por infortúnio laboral – objeto normativo e ressonância histórica –, decorre que, para densificar o seu conteúdo, é essencial compreender a função do instituto jurídico da assistência e reparação em caso de infortúnio laboral. Ora, tal instituto não é uma criação original e recente do legislador português. É um elemento destacado do património jurídico comum da generalidade dos sistemas que integram, quer a família dos direitos romano-germânicos, quer a da common law , e constitui uma figura emblemática da transformação do direito do trabalho ocorrida no contexto histórico da «questão social» emergente da Revolução Industrial. Daí que, para compreender o seu sentido, seja indispensável explicar, ainda que sumariamente, as suas origens e o seu desenvolvimento. 7. O instituto jurídico da reparação por infortúnio laboral surgiu da mesma forma que a generalidade dos institutos próprios do moderno direito do trabalho, através da segregação das relações laborais do domí- nio de aplicação do direito civil, entendido como direito privado comum, e a sua sujeição a regimes especiais calibrados em função das particularidades do trabalho subordinado (no mesmo sentido, vide o Acórdão n.º 150/00). Na origem dos regimes de reparação do dano laboral esteve a tomada de consciência da insufi- ciente proteção dada ao trabalhador vítima de acidente de trabalho ou de doença profissional pelo regime da responsabilidade civil delitual, baseado no princípio de que o lesado suporta o dano – casum sentit dominus –, exceto se este for imputável a conduta culposa de terceiro. No decurso do séc. XIX, assistiu-se a um enorme crescimento na frequência, intensidade e mediatização dos acidentes de trabalho nos países industrializados. Nas fábricas, nos caminhos de ferro, nos barcos-a-vapor e nas minas de carvão – os locais típicos da primeira encarnação histórica do trabalho industrial – era comum ocorrerem descarrilamentos, colisões, explosões, derrocadas, esmagamentos, incêndios e outros desastres que provocavam tipicamente a morte ou lesões corporais incapacitantes. A reparação pelos danos sofridos, nos termos das regras gerais, revelava-se praticamente impossível, deparando com três grandes obstáculos. Em primeiro lugar, era necessário que o acidente se devesse a culpa de terceiro, quando normalmente se devia à periculosidade do trabalho industrial ou à própria negligência da vítima. Em segundo lugar, o lesado tinha de intentar uma ação judicial de responsabilidade civil, suportando os respetivos custos, observando os ónus probatórios e aguardando pacientemente o desenlace do processo. Finalmente, na eventualidade improvável de o pedido do autor vir a ser julgado procedente, o pagamento da indemnização dependia da solvência do réu, as mais das vezes um companheiro de trabalho sem património significativo, a cuja negligência se devia o acidente.
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