TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
720 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL situações e atividades cujo “princípio” seja o de que uma pessoa, numa qualquer dimensão (seja a intelectual, seja a física, seja a sexual), possa ser utilizada como puro instrumento ou meio ao serviço de outrem. A isto nos impele, desde logo, o artigo 1.º da Constituição, ao fundamentar o Estado Português na igual dignidade da pessoa humana. E é nesta linha de orientação que Portugal ratificou a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (Lei n.º 23/80, em Diário da República , I Série, de 26 de julho de 1980), bem como, em 1991 a Convenção para a Supressão do Tráfico de Pessoas e de Exploração da Prostituição de Outrem ( Diário da República , I Série, de 10 de outubro de 1991). (…) Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particu- lar ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma “auto- nomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocandoo em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incriminados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e) , do Código Penal], sempre com fundamento na perspetiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comporta- mento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.» Este entendimento seria invariavelmente repetido nos julgamentos subsequentemente empreendidos sobre a norma que prevê o crime de lenocínio simples, tal como foi tipificado no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal (desde a revisão do Código Penal de 1998) e, mais tarde (desde a revisão de 2007), no artigo 169.º, n.º 1, do Código Penal (cfr., para além dos acórdãos já aludidos, ainda os Acórdãos n. os 196/04 e 303/04). Assim, nos acórdãos do Tribunal tem sido identificada uma razão de política criminal justificativa da incriminação distinta de meras considerações de moralidade sexual. Antes «o entendimento de que a ofensividade que legitima a intervenção penal assenta numa perspetiva fundada de que as situações de prostituição, relativamente às quais existe promoção e aproveitamento económico por terceiros, compor- tam um risco elevado e não aceitável de exploração de uma situação de carência e desproteção social, inter- ferindo com – colocando em perigo – a autonomia e liberdade do agente que se prostitui» (vide Acórdão n.º 641/16, ponto 8).
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