TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
545 acórdão n.º 396/17 da avaliação do juiz perante quem fossem apresentados para depor, e não de uma qualquer anterior declaração judicial de interdição da testemunha para reger a sua pessoa e bens. A solução do CPP de 1929 foi copiada no processo civil pelo Código de Processo Civil de 1939 (artigo 623.º), o qual alterou o regime que anteriormente constava dos artigos 2506.º e seguintes do Código Civil de 1867. Tal opção foi, no seu início, objeto de críticas, apontando-se o facto da interdição ser um instituto que se destinava a proteger os dementes, enquanto a proibição do seu depoimento em processo judicial visava proteger as partes e a administração da justiça, e ainda a circunstância do tipo ou do nível de demência dos interditos poder não os tornar inaptos para depor (vide, relativamente ao processo penal, Luís Osório, em Comentário ao Código do Processo Penal Português , 3.º vol., pp. 320-321, da ed. de 1933, da Coimbra Editora, e, relativamente ao processo civil, Cunha Gonçalves, em Tratado de direito civil, em comentário ao Código Civil Português , vol. XIV, p. 364-365, da ed. de 1940, da Coimbra Editora, e Augusto Coimbra, em “O novo Código de Processo Civil”, na Revista da Justiça, Ano 24.º, p. 245, enquanto Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil anotado , vol. IV, p. 327-330, da ed. de 1951, da Coimbra Editora, defendia a alteração operada), manifestando Vaz Serra (em “Provas. Direito probatório material”, no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 112, p. 245-246) a preferência por um regime em que competiria ao juiz apreciar livremente o valor probatório da prova testemunhal, mesmo quando prestada por pessoas com anomalias psíquicas, uma vez que “pode acontecer que o depoimento dos desassisados, ainda que interditos, seja útil para o esclarecimento da verdade dos factos”, dispensando-se apenas a prestação de juramento. Contudo, a solução adotada, que se revela desacompanhada no direito comparado, foi-se mantendo no nosso regime processual, constando hoje dos artigos 131.º, n.º 1, do CPP, e 616.º, do CPC. (…) A opção de aproveitamento das sentenças civis de interdição visou conferir uma maior certeza sobre qual o uni- verso de pessoas consideradas incapazes de prestarem declarações em processo penal, devido a sofrerem de anomalia psíquica, retirando ao julgamento incerto, difícil e casuístico do julgador essa apreciação, nesses casos, mantendo- -se, contudo, uma margem de liberdade de apreciação, na verificação da aptidão mental de qualquer pessoa que não se encontre interdita, para prestar testemunho, nos termos do n.º 2, do artigo 131.º, do CPP.» 9. Como esclarecem as passagens transcritas, a solução legal sob escrutínio destina-se essencialmente a prevenir o erro judicial na apreciação, quer da idoneidade para testemunhar das pessoas que padecem de anomalia psíquica, quer da credibilidade dos depoimentos dessas pessoas, no caso de lhes ser permitido que prestem testemunho. Presumindo que essa apreciação é intrinsecamente difícil – e, por essa razão, propensa ao erro – o legisla- dor, através desta medida, terá tido em vista a tutela «do direito à prova, entendido numa dimensão objetiva, com o sentido de que o processo criminal e o interesse geral que o mesmo prossegue exigem mecanismos que propiciem a obtenção de uma prova tendencialmente genuína, apta a permitir a representação tão fidedigna quanto possível da verdade material.» (Acórdão n.º 291/17). Por outro lado, a incapacidade absoluta dos interditos por anomalia psíquica testemunharem constitui, ela própria, uma compressão do direito à prova, também aqui na vertente essencialmente objetiva de valor ou bem salvaguardado pela Constituição, na medida em que exclui a possibilidade de produção de prova testemunhal que poderia vir a revelar-se útil e até decisiva na descoberta da verdade. Tal restrição é particu- larmente significativa naquelas situações – como a do caso vertente – em que a incapacidade recai sobre a vítima. Em suma, em causa está uma medida de promoção de um bem, através de um meio lesivo desse mesmo bem – a integridade probatória do processo penal, refratária do direito ao processo equitativo (artigo 20.º, n.º 4, da Constituição) e do próprio princípio do Estado de direito (artigo 2.º). Com efeito, para prevenir a valoração de depoimentos com um valor probatório negativo – uma possibilidade inerente a um regime de livre apreciação da prova –, a lei exclui liminarmente todo um universo de depoimentos, o dos interditos por anomalia psíquica, que abrange um subconjunto mais ou menos alargado de casos de valor probatório
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