TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

533 acórdão n.º 395/17 (a entrada em vigor da lei interpretativa) ocorreu no passado (a entrada em vigor da lei interpretada). A retroatividade das normas interpretativas resulta dessa ficção. E é precisamente pelo facto de, através dessa ficção, atribuir eficácia retroativa às normas interpretativas, que o legislador sentiu a necessidade de acaute- lar – «ficando salvos» – uma série de efeitos já produzidos no momento em que a lei interpretativa entra em vigor, nomeadamente o «cumprimento da obrigação», a «sentença passada em julgado» e a «transação, ainda que não homologada». Não parece haver qualquer dúvida, pois, de que as normas interpretativas têm natureza retroativa (neste sentido, vide os Acórdãos n. os 374/92 e 216/15). Mas esta conclusão parece provar de mais. São autêntica ou verdadeiramente interpretativas – e assim as entende, como se viu, o tribunal a quo – as normas que, perante a ambiguidade da lei interpretada e a incerteza quanto à sua aplicação, impõem ao intérprete um dos seus sentidos possíveis ou uma das posições compreendidas nos «quadros da controvérsia» que se estabeleceu a respeito da sua interpretação. A retroatividade decorre do facto de se ficcionar que essa imposição de sentido resultava já da lei interpretada, quando é exatamente a ambiguidade e controvertibilidade de sentido desta que justifica a intervenção interpretativa do legislador. Ora, se é assim, se a interpretação legislativa de leis ambíguas e controvertidas – ou seja, de leis que admitem mais do que uma interpretação – é retroativa, parece ter de se concluir que também o são as deci- sões judiciais que se baseiam na interpretação e aplicação dessas leis, porque implicam igualmente a adoção, no momento presente, de um dos sentidos possíveis da lei. O problema está no facto de as propriedades das leis interpretativas com base nas quais se conclui que estas têm natureza retroativa serem propriedades de toda a interpretação das leis, pelo menos naqueles casos – sem dúvida numerosos – em que a lei interpretada é suscetível de mais do que uma interpretação. Esta conclusão suscita particular perplexidade no domínio fiscal, porque ao estabelecer que «ninguém pode ser obrigado a pagar impostos (…) que tenham natureza retroativa», o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição, dirige a proibição da retroatividade não apenas ao legisla- dor, mas a todos os poderes do Estado. Sucede que, sem prejuízo da identidade de conteúdo, é necessário distinguir a interpretação legislativa da interpretação judicial, quer quanto ao seu fundamento, quer quanto ao seu processo. Quanto ao primeiro aspeto, importa notar que, ao passo que a interpretação judicial tem por fun- damento a autoridade jurisdicional dos tribunais – ou seja, a idoneidade destes para «dizerem o direito» ou «descobrirem o direito», nomeadamente o direito vertido nas leis, a interpretação legislativa baseia-se na autoridade política do legislador, o mesmo é dizer, no facto de caber ao poder legislativo determinar o que é mais justo, conveniente ou oportuno para a comunidade. Quando um tribunal interpreta uma lei, nomeadamente uma lei ambígua, num certo sentido, o fundamento da decisão é a correção jurídica desse juízo; o tribunal afirma que determinado sentido é o sentido verdadeiro e originário da lei, de tal modo que as posições jurídicas – os direitos, os poderes, os deveres ou os ónus – por ele implicadas já se encontravam definidas no momento em que a lei entrou em vigor. É claro que os tribunais cometem necessariamente erros de interpretação e que a interpretação das leis é muitas vezes objeto de controvérsia; é ainda certo que, em muitas situações, os juízes têm dúvidas, por vezes insanáveis, sobre o sentido a dar às leis que interpretam. Mas ao decidir um caso em que se coloca um problema de interpretação difícil e controverso, o tribunal atua, por necessidade funcional, no exercício de um poder estritamente jurisdicional – o de decidir qual o direito consagrado na lei. Já o legislador, não tendo qualquer competência jurisdicional, atua sempre com base na sua autoridade política, ou seja, com funda- mento no seu título constitucional para decidir o que é melhor para a comunidade. Significa isto que, ao interpretar a lei num certo sentido, o legislador não se arroga a idoneidade de descobrir o direito nela vertido, mas o de fixar o sentido com que ela deve valer por razões de justiça, utilidade ou oportunidade sobre as quais só ele tem autoridade constitucional para decidir; os critérios da sua decisão são, por necessidade funcional, de natureza política e não jurídica.

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