TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

305 acórdão n.º 271/17 mesmo tempo e sem mais o Governo a legislar sobre a intromissão no domicílio. Segundo o Acórdão haverá, assim, uma “unidade teleológica e jurídico material” entre os dois momentos. A verdade é que, a meu ver, estão em causa dois momentos distintos tanto no plano normológico como normativo. Uma coisa é legitimar a invasão do domicílio como espaço territorial da reserva da privacidade/ intimidade; outra, muito diferente, é decidir sobre o tribunal competente para emitir o mandato erigido em pressuposto procedimental daquela forma de invasividade e devassa. Na certeza de que a decisão sobre a segunda não coenvolve, só por si e necessariamente, a decisão sobre a primeira. Pelo menos com o grau de determinabilidade e clareza exigido para as normas que versam sobre a compressão de direitos com a den- sidade da inviolabilidade do domicílio. Por ser assim, o tratamento de ambas as matérias reclama previsão normativa explícita, determinada e unívoca. Porque ambas as matérias estão cometidas à reserva relativa da Assembleia da República, as exigências que ficam assinaladas valem naturalmente para as pertinentes leis de autorização legislativa. Como refere Gomes Canotilho (in Direito Constitucional e Teoria da Constituição , Almedina, 1998, p. 672), “(...) se as autorizações legislativas não querem limitar-se a cheques em branco, necessário se torna especificar o objecto da autorização, e não indicar apenas, de um modo vago, genérico ou flutuante (…), as matérias que irão ser objecto de decretos-leis delegados (princípio da especialidade das autorizações legislati- vas). Como se diz no direito norte-americano, a lei de autorização deve conter os princípios bases da política ( basic policy standards ) e não apenas standards vagos ( great standards ).” Se é assim em geral, é-o de forma paradigmática num caso como o dos autos, tendo em conta a expe- riência jurídica portuguesa e a controvérsia constitucional que a Lei n.º 100/2015, de 19 de agosto, se pro- pôs superar. Recorda-se que, até então, o escrutínio do Tribunal Constitucional recaíra apenas sobre o n.º 3 do artigo 95.º do RJUE, por referência à alínea p) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição da República. E foi unicamente para responder ao vício de inconstitucionalidade orgânica daquele preceito que a lei de autorização legislativa de 2015 veio autorizar o Governo a legislar sobre o Tribunal competente para emitir o mandato. Sendo certo que a controvérsia constitucional sobre o n.º 2 do artigo 95.º do mesmo RJUE só veio a ganhar relevo autónomo e a ser assumida e conhecida em 2016, concretamente com o Acórdão n.º 195/16. Bem vistas as coisas, podem sobrar dúvidas – mais ou menos pertinentes, mais ou menos (in)vencíveis – sobre se o legislador de 2015 terá tido consciência atualizada e clara desse problema, que só veio a suscitar- -se em 2016. Sobrando igualmente dúvidas sobre se terá ou não querido responder-lhes. Pelo menos, não o fez seguramente com o grau de determinabilidade e clareza sem o qual não pode dar-se como legitimada a devassa de um espaço com a densidade axiológica do domicílio, o espaço do entrincheiramento da intimi- dade. – Manuel da Costa Andrade. Anotação: Os Acórdãos n. o s 145/09 e 195/16 estão publicados em Acórdãos, 74.º e 95.º Vols., respetivamente.

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