TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
286 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 11. Certo é que tal reserva não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma even- tual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma. O conceito de lei interpretativa acolhe precisamente tal possibilidade. Porém, ao fazê-lo, o legislador tem de agir no quadro da ordem constitu- cional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. Acresce que o legislador não pode ultrapassar tais limites nem neutralizar ou esvaziar o correspondente poder de controlo dos tribunais consignado no artigo 204.º da Constituição, por via da afirmação, na qua- lidade de autor formal, de que a norma legal por si aprovada tem um alcance meramente declarativo ou clarificador e não inovador. A Constituição não reconhece ao legislador competência para a interpretação autêntica de normas legais. Recordando a lição de Batista Machado ( supra n.º 7), a lei legalmente qualificada como interpretativa não deixa de ser uma manifestação da mesma competência legislativa que é fonte em sentido orgânico da lei interpretada. Por ser assim, a decisão última sobre o alcance constitutivo ou declara- tivo de certa lei interpretativa pertence aos tribunais. São estes que, no exercício da jurisdição, interpretam a “lei interpretativa” e determinam se a mesma inova face ao direito preexistente ou se limita a clarificá-lo. Competindo, por outro lado, aos tribunais a função jurisdicional – a iurisdictio –, é claro que a exclusão ou imposição de uma ou mais interpretações jurisdicionais de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas decla- rações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis. Na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer”. E, a ser assim, a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza cons- titutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial. Pode, portanto, dizer-se que, do ponto de vista da Constituição, para que uma disciplina normativa autoqualificada como meramente interpretativa seja considerada constitutiva (de novo direito) e, como tal, substancialmente retroativa, basta a verificação de que à norma interpretada na sua primitiva versão pudesse ter sido imputado pelos tribunais um sentido que, na sequência da norma interpretativa, ficou necessaria- mente excluído (cfr. as decisões do Bundesverfassungsgericht de 2 de maio de 2012 e de 17 de dezembro de 2013, em BVerfGE 131, 20 [37-38] e 135, 1 [16-17], respetivamente). Com efeito: «A disciplina clarificadora é constitutiva logo nos casos em que visa excluir a interpretação [da lei preexistente] feita por um tribunal comum – mesmo não se tratando de um tribunal superior –, relativamente a situações pas- sadas. O legislador confere à lei retroativa uma eficácia constitutiva, na medida em que pretende esclarecer para o passado, por via de uma lei com um sentido unívoco, certa afirmação que originou, quanto ao direito aplicável, um entendimento aparentemente não unívoco ou, pelo menos, uma aplicação do mesmo não uniforme. […] Decisivo é que o legislador tenha a intenção de corrigir ou excluir uma dada interpretação [feita pelos tribunais].» (vide BVerfGE 135, 1 [18-19]) É esse precisamente o efeito do artigo 135.º da LOE 2016, ao qualificar como “lei interpretativa” o n.º 21 aditado pelo artigo 133.º ao artigo 88.º do CIRC. Na verdade, e como bem refere a decisão ora recor- rida, aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admissibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas – como o sufra- gado nas decisões do Centro de Arbitragem Administrativa - CAAD proferidas no âmbito dos processos n. os 769/2014-T, 163/2014-T, 219/2015-T e 370/2015 –, deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21. Daí ser inequívoco o caráter substancialmente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa. Dado o conteúdo gravoso para os contribuintes da nova solução legal – visto que tende a agravar o quantum devido a título de IRC –, a pretensão de a mesma se aplicar a anos fiscais anteriores ao do início da sua vigência mostra-se flagrantemente incompatível com a proibição constitucional de impostos retroativos (cfr. o artigo 103.º, n.º 3, da Constituição).
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