TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
264 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL III – O Tribunal Constitucional tem vindo a seguir o entendimento de que a proibição da retroatividade, no domínio da lei fiscal, apenas se dirige à retroatividade autêntica, abrangendo apenas os casos em que o facto tributário que a lei nova pretende regular já tenha produzido todos os seus efeitos ao abrigo da lei antiga, excluindo do seu âmbito aplicativo as situações de retrospetividade ou de retroatividade imprópria, ou seja, aquelas situações em que a lei é aplicada a factos passados mas cujos efeitos ain- da perduram no presente, como sucede quando as normas fiscais que produziram um agravamento da posição fiscal dos contribuintes em relação a factos tributários que não ocorreram totalmente no domínio da lei antiga e continuam a formar-se, ainda no decurso do mesmo ano fiscal, na vigência da nova lei. IV – Na determinação da existência de uma lei interpretativa substancialmente retroativa, não pode, de um ponto de vista constitucional, abstrair-se das posições recíprocas do legislador e da jurisdição quanto à fixação do direito aplicável; no tocante à função jurisdicional, o seu exercício (reserva de jurisdi- ção) não colide com o poder de o legislador, no exercício das suas competências próprias, alterar ou esclarecer o sentido de uma norma legal anterior e, por via disso, determinar uma eventual correção ou modificação da jurisprudência relativa a tal norma; o conceito de lei interpretativa acolhe preci- samente tal possibilidade, tendo o legislador de, ao fazê-lo, agir no quadro da ordem constitucional, respeitando os limites constitucionais decorrentes do princípio da segurança jurídica e da tutela da confiança legítima relativamente à retroatividade substancial. V – O legislador não pode ultrapassar tais limites nem neutralizar ou esvaziar o correspondente poder de controlo dos tribunais consignado no artigo 204.º da Constituição, por via da afirmação, na qualidade de autor formal, de que a norma legal por si aprovada tem um alcance meramente declarativo ou cla- rificador e não inovador; a Constituição não reconhece ao legislador competência para a interpretação autêntica de normas legais, pertencendo aos tribunais a decisão última sobre o alcance constitutivo ou declarativo de certa lei interpretativa, sendo estes que, no exercício da jurisdição, interpretam a “lei interpretativa” e determinam se a mesma inova face ao direito preexistente ou se limita a clarificá-lo. VI – Competindo aos tribunais a função jurisdicional – a iurisdictio –, é claro que a exclusão ou imposi- ção de uma ou mais interpretações jurisdicionais de certa norma legal já realizadas – ou claramente admissíveis – por determinação de uma lei posterior limita o alcance da primeira: entre as múltiplas declarações do direito de que tal lei era passível, algumas deixaram ex vi legis de ser admissíveis; na medida de tal limitação, ocorre uma modificação do direito que os tribunais “podem dizer” e, a ser assim, a interpretação ou esclarecimento formalmente consagrados pela lei nova não podem deixar de revestir uma natureza constitutiva e a retroatividade inerente à mesma lei ter um caráter substancial. VII – Do ponto de vista da Constituição, para que uma disciplina normativa autoqualificada como mera- mente interpretativa seja considerada constitutiva (de novo direito) e, como tal, substancialmente retroativa, basta a verificação de que à norma interpretada na sua primitiva versão pudesse ter sido imputado pelos tribunais um sentido que, na sequência da norma interpretativa, ficou necessaria- mente excluído, sendo esse precisamente o efeito do artigo 135.º da Lei do Orçamento do Estado para 2016, ao qualificar como “lei interpretativa” o n.º 21 aditado pelo artigo 133.º ao artigo 88.º do CIRC; na verdade, aquele que representava um certo entendimento jurisprudencial quanto à admis- sibilidade de deduções ao montante global da coleta de IRC, incluindo nesta o valor das tributações autónomas deixou de ser admissível à luz do citado n.º 21, sendo inequívoco o caráter substancial- mente retroativo desse preceito, entendido como lei interpretativa.
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