TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
260 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL aquela disposição legal». Assim, a reclamação é obrigatória mesmo que não se demonstre que estão preenchi- dos os pressupostos que, no caso em concreto, permitam tomar a decisão final através de juiz singular (“sim- plicidade” e “manifestamente infundada”), e ainda que não haja qualquer correspondência entre a invocação desses pressupostos e o conteúdo da decisão proferida. Ora, uma das componentes do processo equitativo é a fundamentação das decisões dos tribunais (artigo 205.º, n.º 1, da Constituição), o que se torna particularmente relevante quando essa exigência é necessária para permitir às partes discernir os ónus processuais de reação que lhe são impostos e as consequências da sua inobservância. Neste caso, o dever de fundamentação justifica-se pela necessidade de avaliação da opção tomada, incluindo a sua controlabilidade, previsibilidade e confiabilidade, quanto ao julgamento da causa em juiz singular. Como acima se referiu, a ausência dessa fundamentação sobrecarrega as partes com o ónus de perceber se a causa é complexa ou simples, se a invocação nominal do artigo 27.º está ou não em cor- respondência com o conteúdo da decisão, solução que, além de iníqua, é geradora de insegurança jurídica quando ao meio de reação processualmente adequado. Perante a prática reiterada e bastante enraizada de interposição do recurso jurisdicional das decisões proferidas em primeira instância em juiz singular, a reclamação para a conferência surgiu como um “ónus imprevisível” que, em vez de reforçar a garantia dos meios impugnatórios, representa um obstáculo proces- sual que apenas adia a subida do processo ao tribunal superior. Porém, a imprevisibilidade do ónus processual não resulta apenas da modificação inesperada da orientação então dominante, mas sobretudo da inexistência de consenso na jurisprudência quanto ao enunciado no acórdão uniformador: uns restringem a sua aplicação aos casos em que o juiz invoca expressamente a alínea i) do n.º 1 do artigo 27.º do CPTA; outros não a apli- cam às decisões dos tribunais de primeira instância. Se é certo que não há acordo sobre o âmbito de aplicação do n.º 2 do artigo 27.º, também é incontestável que não há como prever as consequências do seu incumpri- mento. Em situação similar à agora analisada, o Tribunal já considerou que a «expressão constitucional de um processo equitativo é premeditadamente aberta, estando dotada de uma força expansiva que lhe permite alcançar aqueles casos, como o presente, em que o incumprimento de um ónus imprevisível é sancionado com a perda definitiva de um importante direito processual, como é o direito ao recurso», justificando-se nes- sas circunstâncias que a garantia do processo equitativo se entrecruze com outros parâmetros constitucionais como os que emanam do artigo 2.º da Constituição (Acórdão n.º 620/13). A inobservância do ónus de reclamação para a conferência tem consequências excessivamente gravo- sas perante uma omissão objetivamente desculpável. Não é por razões de eficácia e celeridade que o ónus se justifica, pois a imposição em primeira instância dificilmente evitará o recurso jurisdicional. De facto, num processo com garantias de um duplo grau de jurisdição, a reclamação para a conferência é uma via de natureza intermediária que não obsta a que o tribunal de recurso se pronuncie sobre mérito da sentença, pois, ainda que a reclamação tenha provimento, a parte contrária, que não reclamou, pode sempre interpor recurso direto da decisão da conferência. Por outro lado, uma decisão que não apresenta qualquer funda- mentação para se configurar como decisão singular, nem demonstra o preenchimento dos pressupostos que a legitimam, torna o erro do recorrente objetivamente desculpável. Como se refere no Acórdão n.º 124/15, «um regime legal ou a interpretação que os tribunais fazem desse regime não pode dificultar de modo exces- sivamente oneroso a atividade das partes, nem implicar consequências processuais que sejam desproporcio- nadas à gravidade e relevância da falta ou deficiência que lhes seja imputada». A existência dessa dificuldade torna impossível estabelecer uma relação de equilíbrio ou de proporção entre a justificação da exigência da reclamação para a conferência e a gravidade das consequências ligadas ao incumprimento de tal exigência. Todas estas considerações, designadamente, a dúvida pertinente quanto à interpretação dos textos legais, a ausência de suficiente explicitação quanto ao uso de competência decisória como juiz relator, a imprevi- sibilidade do ónus processual imposto à parte face à prática jurisprudencial inicialmente adotada, o caráter excessivamente gravoso da consequência cominatória resultante da inobservância do ónus, e a desculpabili- dade da conduta processual da parte, apontam para considerar que a interpretação normativa adotada pela
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