TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

191 acórdão n.º 246/17 2.4. Algo de muito semelhante ao atrás descrito poderá transpor-se, sem dificuldades, no caso dos denominados “arquivamentos impróprios” em direito português, nos quais se inclui a decisão de rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º do CPP. Na verdade, não será isenta de dificuldade uma solução que, perante qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento, conduza sempre e inexoravelmente à falência do processo penal e à impossibilidade da persegui- ção criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem com isso (só com isso) se salvaguardar qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que, certamente, o legislador ordinário não pretenderia e, acima de tudo, a Constituição não parece impor. Afigura-se, pois, razoável que, no processo penal, o legislador encontre soluções que permitam a cor- reção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” da acusação, desde que sejam respeitados certos limites (adiante assinalados) e se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa. Assim, relativamente aos ditos “arquivamentos impróprios”, poderá, então, afirmar-se que (Inês Ferreira Leite, ob. cit. , vol. II, pp. 573/574): “[…] Nem o ne bis in idem , nem o acusatório, exigem que qualquer invalidade ou erro processual sejam fatais, exi- gindo apenas que se respeitem os limites do objeto do processo e que se mantenha a continuidade do processo. Pelo que não seria contrária ao ne bis in idem uma interpretação do artigo 311.º, n.º 2, [do CPP] segundo a qual esta rejeição admitiria ainda a reformulação da acusação, quando lhe faltem os requisitos referidos no n.º 3. […]” (itálico acrescentado). Tal afirmação – como, de resto, a Autora ressalva de imediato ( ob. cit. , p. 575) – não pode ter, no limite, uma validade genérica e universal, porquanto a possibilidade de renovação da acusação não deixará, de certo modo, de ficar dependente da conjugação de circunstâncias do caso, que tornarão mais ou menos intensa a necessidade de tutela perante a continuação da perseguição criminal, designadamente: se foi respeitado o objeto decorrente da acusação reformulada; se a reformulação ocorre dentro de um prazo razoável; se ao arguido são facultados os mesmos meios de defesa de que poderia lançar mão perante a acusação primitiva (por exemplo, a possibilidade de requerer a instrução); se os fundamentos da rejeição permitem correção; ou se o ato decisório de rejeição ocorre no início da fase de julgamento ou tardiamente ( ob. cit. , p. 575, nota 6202). A conjugação de fatores como os descritos permite modelar a posição do arguido no processo, por forma a compreender se o risco que é inerente à sujeição ao processo penal é ainda “o primeiro” ou “o segundo” (na formulação atrás sugerida), sem perder de vista que a vertente processual do princípio ne bis in idem se destina a proteger aquele sujeito da repetição da perseguição criminal, mas a própria noção dessa “repetição” obriga a referir o risco à dinâmica do processo e às respetivas vicissitudes. Pois bem, perante as circunstâncias do caso concreto, entende-se que a tutela da posição do arguido, ora recorrente, através da dimensão processual do princípio ne bis in idem , não reclama – de forma alguma (e independentemente da melhor interpretação da lei infraconstitucional, que não cumpre apreciar no pre- sente recurso) – que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida com o primeiro despacho de rejeição da acusação, considerando que os respetivos fundamentos se dirigiram a uma insuficiência (em última análise formal) da acusação, sendo que a rejeição desta ocorreu logo no primeiro ato da fase de julga- mento, não chegando o arguido a sujeitar-se à pendência do processo na referida fase. Tudo se passou, pois, em termos sequencialmente muito aproximados do que ocorreria com a normal dedução de uma acusação em processo comum.

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