TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

190 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A sujeição ao processo penal implica para o arguido um risco – o risco expresso na possibilidade de condenação –, risco esse que não pode prolongar-se indefinidamente ou, a partir de certo ponto, repetir-se. Na jurisprudência e na doutrina norte-americanas, fala-se, quanto à V Emenda à Constituição – “[…] ninguém poderá ser, pelo mesmo crime, duas vezes colocado em risco na sua vida ou integridade física […]”; “[…] be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb […]” –, de evitar o duplo risco ( double jeopardy ), enquanto regra fundamental de direito processual penal. Sobre tal regra, escreve Akhil Reed Amar, [“Double Jeopardy Law Made Simple”, in The Yale Law Journal , vol. 106 (1997), pp. 1838, 1840 e 1841]: “[…] Uma vez que a palavra ‘jeopardy’ assenta numa metáfora de jogo – ‘jeopardy’ é, etimologicamente, um jogo de resultado incerto, um jogo que se pode perder [como o Autor nota, a pp. 1810, constitui um galicismo, com origem na expressão “ jeu-perdre ”] – podemos recolocar a questão perguntando quando começa e quando termina o ‘jogo’. Quais são exatamente as regras do jogo quando os árbitros tomam decisões erradas, quando os jogadores fazem batota ou cometem falta ou quando fatores externos, como o mau tempo, interferem com o jogo? […] Mas a acusação é, apenas, o momento em que o ‘jogo do julgamento’ começa, e esse jogo não termina até que haja um ‘vencedor’. Até que haja o ‘primeiro perigo’ não terminou, e procedimentos adicionais não sujeitam o arguido a um perigo pela segunda vez. […]”. E, quanto a decisões no processo que padeçam de erro manifesto, em benefício do arguido (p. 1844): “[…] [Nenhum] valor constitucional é garantido excluindo de reversão e de revisão os erros no processo. Tal exclusão torna-se um prémio arbitrário para o culpado, não um esquema estruturado de proteção do inocente. Seria o equi- valente a dizer que um em cada três arguidos, aleatoriamente escolhido, ficará livre do processo sem uma boa razão para isso. O arguido não tem propriamente um direito a que os erros funcionem sempre a seu favor. […]”. Daí que – como observa Inês Ferreira Leite ( ob. cit. , p. 573, nota 6199): “[…] Mesmo nos EUA, são admissíveis casos de retrial, após ‘ defective indictements ’. […] De acordo com os estatutos e a prática nas instâncias penais internacionais, uma acusação que não contenha a descrição de todos os factos materiais que, findo o julgamento, forem considerados necessários ou pertinentes para a fundamentação da condenação pelo tribu- nal é considerada ‘defective’, podendo ser corrigida. Este defeito da acusação, consoante a intensidade da falha, pode ser superado por diversas vias. Quando se trate de adicionar uma nova imputação, ou pretensão punitiva, a altera- ção em fase de julgamento será excecional. Mas quando se trate da mera adição de novos factos materiais relacionados com algumas das imputações já referidas na acusação, o vício pode ser colmatado mediante a modificação da acusação ou pela mera comprovação de que os factos foram, não obstante, já comunicados ao arguido ao longo do processo de forma clara e expressa e que este teve já oportunidade de, sobre os mesmos, exercer a sua defesa. […]” (itálicos acrescentados). No sentido de que não existe “duplo perigo” se a acusação pede a anulação do processo antes da deci- são final e acusa novamente o arguido, por falta de um elemento subjetivo do crime na primitiva acusação, estabeleceu-se, aliás, na jurisprudência norte-americana um precedente com o caso Illinois v. Somerville , de 1973 ( https://supreme.justia.com/cases/federal/us/410/458/ ) .

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