TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

189 acórdão n.º 246/17 A esta luz, retomemos, nos seus exatos termos, a decisão de rejeição da acusação: “[…] os factos impu- tados ao arguido nestes autos não consubstanciam a prática do crime indiciado, porquanto lhe falta um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l com que o condutor conduzia”. Resulta evidente que o excerto da decisão “factos imputados nestes autos” não se pode referir, claro está, ao que ocorreu em determinada hora e local (e que terá resultado atestado, por exemplo, pelo talão do alcoo- límetro que consta de fls. 7 – e já existia no processo aquando da apresentação do recorrente em processo abreviado), mas única e estritamente ao que se descreve na concreta acusação para julgamento sob a forma de processo abreviado (cfr. os artigos 391.º-A, n.º 1, e 391.º-B, n.º 1, do CPP), pois apenas desta se pode dizer que lhe “falta um dos elementos objetivos”. Tanto basta para concluir que semelhante juízo, por um lado, vai referido à descrição da acusação – ao ato processual que encerra a descrição incompleta – e, por outro lado, não é imediatamente transponível para o ato processual subsequente que supre a omissão apontada, porque as razões que ditaram a decisão deixaram de se verificar. Vale isto por dizer que a questão a apreciar não pode colocar-se no pressuposto de uma apreciação material (qualificação jurídico-penal) da integralidade dos factos, enquanto acontecimentos do mundo real ocorridos na data, hora e local indicados na acusação – porque não foi esse o teor, nem o sentido, da decisão de rejeição da acusação – tendo que ser recolocada. Ora, este reposicionamento do problema leva a questionar se a Constituição impõe que semelhante apreciação – refletida na norma, tal como oportunamente foi enunciada (item 2., supra ) – precluda a possi- bilidade de dedução de uma nova acusação que, dizendo respeito ao mesmo “pedaço de vida” subjacente à primeira, complete a descrição dos factos com os elementos em falta na primeira. A questão deste modo (re)colocada obriga a equacionar a já assinalada vertente processual do ne bis in idem . 2.3. Trata-se de determinar o sentido do princípio em causa por referência às vicissitudes da dinâmica processual. Nas palavras de Inês Ferreira Leite [ Ne (Idem) Bis In Idem – proibição de dupla punição e de duplo julgamento: contributos para a racionalidade do poder punitivo público , vol. I, Lisboa, 2016, p. 591], trata-se de saber: “[…] [Q]uando é que fica consumido o direito de ação contra o arguido, pela mesma pretensão punitiva e por força do exercício do próprio direito de ação, independentemente da existência de uma sentença transitada em julgado. Ou seja, saber em que momento é que um processo sancionatório em curso assume tamanha relevância que, independentemente do conteúdo da decisão, findo este, o arguido deverá considerar-se definitivamente julgado, ficando esgotado o poder punitivo público no que respeita à pretensão punitiva em causa. Ou, ainda, a partir de que momento, durante o curso de um processo sancionatório, impende sobre o Estado o ónus de alcançar uma decisão definitiva sobre a validade e a verificação da pretensão punitiva, sob pena de se resignar à frustração do correspondente poder punitivo. […]”. E acrescenta a mesma Autora ( ob. cit. , p. 602): “[…] Se a proteção do ne bis in idem tem o seu início a partir do momento em que é formalizado o objeto e manifes- tada a potestas punitiva do Estado, num plano jurisdicional, a exaustão desse poder punitivo deverá ocorrer após a prolação de uma decisão (jurisdicional) que implique a realização de um juízo sobre essa mesma pretensão punitiva. […]” (itálico acrescentado).

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