TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017
188 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL da pretensão penal. Para tanto, o recorrente invoca a norma citada na decisão – a alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º do CPP, onde se prevê que a acusação se considera manifestamente infundada “se os factos não cons- tituírem crime” –, concluindo, sem mais, que os factos descritos na acusação subsequente estavam cobertos pelo mesmo juízo. Tal conclusão atende unicamente ao teor literal da norma invocada, mas o sentido da decisão não pode ser compreendido sem considerar, também, o teor do despacho que se fundou nessa norma (item 1.1., supra ). É particularmente relevante para o caso a interpretação deste despacho, tarefa que obedece a cânones próprios, como se assinalou no Acórdão n.º 522/06 (a respeito da interpretação de uma decisão judicial – objeto do recurso de constitucionalidade – contendo um pronunciamento reputado de ambíguo): “[…] A interpretação jurídica é encarada nos sistemas continentais como respeitando, essencialmente, à interpreta- ção de normas (‘interpretação das leis’), ao passo que nos sistemas de common law, na base do entendimento de que todos os ‘textos jurídicos’ (leis, contratos, testamentos e decisões judiciais) formam um continuum e colocam, basicamente, embora em planos distintos, os mesmos problemas interpretativos, tende-se a formular critérios comuns de interpretação (vide Aharon Barak, [ Purposive Interpretation in Law , Princeton, 2005] p. 184). Neste caso – interpretação de uma decisão judicial –, as regras interpretativas a observar são no essencial as mesmas que a ultrapassagem de uma situação de ambiguidade semântica num trecho normativo convocaria (vide, quanto à ambi- guidade de normas, Batista Machado, [ Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1983], p. 189)]. Frequentemente a ultrapassagem da ambiguidade é possível […] situando o trecho ambíguo no seu contexto. A apreciação deste convoca, na procura de uma efetiva compreensão do texto, tudo aquilo que neste antecede, sucede ou ocorre simultaneamente a determinada unidade linguística e que assume significado relativamente à realização dessa unidade. Situar um determinado trecho no respetivo contexto, significa, assim, observá-lo na dupla vertente do conjunto dos elementos constantes do próprio texto (contexto intrínseco; o texto encarado na sua globalidade) e dos elementos exteriores a este que se mostrem relevantes para a sua compreensão (contexto extrínseco), o que engloba os elementos históricos, doutrinais, jurisprudenciais, etc., que o entendimento racional do texto convoque (Aharon Barak, ob. cit., p. 101). […]”. Assim, na procura do significado de uma decisão judicial – não sendo irrelevante a pesquisa de alguns elementos de pendor mais subjetivo, referidos ao sentido em que os destinatários diretos da injunção judicial a captam – opera como elemento fundamental estruturante da compreensão do seu sentido o ato interpreta- tivo da lei – se preferirmos do Direito – plasmado no concreto. Deste modo, as afirmações decisórias contidas num pronunciamento judicial não valem desgarradas do ato de aplicação do Direito que as determinou ou, tão pouco, pela sua aparência semântica. Valem, isso sim, no quadro jurídico que a elas conduziu e na medida – e só nessa medida – em que nesse quadro adquiriram significado e são passíveis de uma reconstrução racional. Valem, pois, como afirmações decisórias de cariz técnico-jurídico cujo significado passa pelo processo argumentativo que as justificou. É neste sentido que os elementos objetivos (correspondentes ao ato de interpretação e aplicação do Direito, visto este como percurso do qual a decisão constitui o ponto de chegada) se destacam, na compreen- são do sentido de uma decisão judicial, da pura afirmação, descontextualizada desse ato, que essa decisão pareça expressar, se isso (o que nela pareça) não obtiver uma efetiva comprovação, racionalmente expressa, no antecedente ato de interpretação e aplicação do Direito. Sendo assim de um dos lados – ou seja, não podendo a declaração do juiz ser entendida sem ligação à norma que a suporta –, a inversa também é verdadeira, ou seja, a norma usada na decisão não pode ditar o sentido desta abstratamente, sem olhar ao texto e ao contexto em que a mesma é produzida.
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