TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

184 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 311.º do CPP. Tenha-se presente que o que se afirmou no despacho de rejeição (cfr. item 1.1. supra ) foi que “[…] os factos imputados ao arguido nestes autos não consubstanci[avam] a prática do crime indiciado, porquanto lhes falta[va] um dos elementos objetivos, a taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20g/l com que o condutor conduzia”. Ou seja, independentemente da alínea do n.º 3 do preceito mencionada na decisão, o juízo de rejeição (que não cabe ao Tribunal Constitucional reapreciar) assentou na deficiente descrição de um elemento típico, omissão que não existia na segunda acusação. Esta diferença, não sendo ocultada pelo recorrente nas alega- ções que apresentou, não é assumida e destacada com a devida autonomia na enunciação da norma, sendo certo que esta hipótese é substancialmente diferente de outras que, genericamente, se reconduzam à aprecia- ção de que determinados factos “não constituem crime”. Como tal, o que se mostra decisivo – como no item 2.2. infra mais detalhadamente se expõe – é aquela descrição insuficiente, e não, simplesmente, que os factos “não constituem crime”, expressão retirada da norma formalmente enunciada, mas que, todavia, não fornece o retrato fiel do sentido da decisão. A enunciação da norma deve, pois, refletir aquele elemento fundamental. Por outro lado, está implícita, na enunciação e nas alegações – devendo ser explicitada –, a sujeição do arguido a julgamento e a subsequente condenação, enquanto incidências que o recorrente apresenta como constitucionalmente vedadas, à luz do ne bis in idem , em vista do resultado do anterior processo abreviado. Finalmente, devemos desconsiderar as referências à forma dos processos (abreviado e comum) e ao con- creto crime imputado (condução em estado de embriaguez), as quais, pese embora correspondam a efetivas incidências do caso, não modelam o recorte da norma, sendo, por essa razão, irrelevantes para o presente recurso de fiscalização concreta. Como tal – e assim delimitamos a questão de inconstitucionalidade normativa moldada por uma deter- minada interpretação –, cumpre apreciar no presente recurso a construção extraída da conjugação dos artigos 311.º, n. os 1, 2, alínea a) , e 3, alínea d) , e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser vali- damente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a julgamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes. 2.1. Delimitada nestes termos a questão a apreciar, convoca-se o parâmetro previsto no n.º 5 do artigo 29.º da CRP, sendo certo que – como salienta o Ministério Público – é este o único a considerar perante as alegações apresentadas. Nesta peça, com efeito, o recorrente invoca o disposto no artigo 32.º, n. os 1 e 2, da CRP sem, todavia, apresentar razões relativas a estes dois preceitos, que destaquem a situação do âmbito especificamente (já) garantido no artigo 29.º, n.º 5, da CRP, ao estabelecer, consagrando o princípio clássico ne bis in idem , que “[n]inguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime”. 2.1.1. O núcleo essencial da proteção conferida por este princípio – pelo princípio ne bis in idem – vai referido à apreciação do mérito da causa penal. Com efeito, como observa Américo Taipa de Carvalho [ Constituição Portuguesa Anotada, Jorge Miranda e Rui Medeiros (org.), tomo I, 2.ª edição, Coimbra, 2010, p. 676]: “[…] O n.º 5 deste artigo 29.º estabelece o princípio chamado ne bis in idem . Esta proibição de ‘duplo julgamento’ pela prática do mesmo crime constitui e continua a constituir uma garantia do cidadão frente a possíveis arbitrarie- dades do ‘ jus puniendi ’ estadual. Assim, a ratio e o alcance deste princípio é o da proibição de um duplo julgamento de alguém que já tenha sido definitivamente absolvido e o da proibição de dupla punição pela prática do mesmo crime. […]”.

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