TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 99.º volume \ 2017

172 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL IV – No caso dos denominados “arquivamentos impróprios”, nos quais se inclui a decisão de rejeição da acusação nos termos do artigo 311.º do Código de Processo Penal, não é razoável que qualquer erro (designadamente, a insuficiente descrição de um elemento típico) que torne a acusação “não-apta” para conformar o objeto do julgamento conduza, sempre e inexoravelmente, à falência do processo penal e à impossibilidade da perseguição criminal, sob pena de se frustrarem os objetivos do próprio sistema processual penal, sem que com isso se salvaguarde qualquer interesse importante do arguido. No limite, a justiça penal poderia ficar, assim, por realizar em virtude de meras imprecisões e erros superáveis, desfecho que a Constituição não impõe. V – Deve, pois, conceder-se ao legislador liberdade para encontrar soluções que permitam a correção de lapsos e omissões, até certo ponto, ultrapassando a “não-aptidão” de uma acusação rejeitada mas sus- cetível de ser completada. VI – Tal possibilidade de correção através de nova acusação implica que se continue a assegurar ao arguido um julgamento justo e com as devidas garantias de defesa e fica dependente da conjugação de circuns- tâncias do caso, que tornarão mais ou menos intensa a necessidade de tutela perante a continuação da perseguição criminal. VII – A conjugação de diversos fatores – entre outros, a manutenção do mesmo objeto processual essen- cial, o prazo de dedução da nova acusação, os meios de defesa facultados ao arguido perante esta, a verificação de fundamentos de rejeição da acusação que permitam a sua correção ou o momento processual em que ocorre a rejeição – permite modelar a posição do arguido no processo, por forma a compreender se resulta duplicado o risco inerente à sujeição ao processo penal, sem perder de vista que a vertente processual do princípio ne bis in idem se destina a proteger aquele sujeito da repetição da perseguição criminal, mas a própria noção dessa “repetição” obriga a referir o risco à dinâmica do processo e às respetivas vicissitudes. VIII– Assim, a tutela da posição do arguido, através da dimensão processual do princípio ne bis in idem , não exige que a pretensão punitiva do Estado se deva considerar consumida logo com o primeiro despacho de rejeição da acusação, particularmente quando os fundamentos deste se dirigem a uma insuficiência (formal) da acusação. IX – Nessas circunstâncias, não é inconstitucional a norma extraída da conjugação dos artigos 311.º, n. os  1, 2, alínea a) , e 3, alínea d) , e 283.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual, tendo sido deduzida acusação contra um arguido, imputando-lhe a prática de um crime, e tendo esta acusação sido liminarmente rejeitada por insuficiente descrição de um elemento típico, poder vir a ser validamente deduzida nova acusação pela prática, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, do mesmo crime, suprindo a omissão da descrição do sobredito elemento típico, sujeitando-se a jul- gamento e condenando-se o arguido pelos factos e qualificação jurídica dela constantes.

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