TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

474 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL enunciado de uma norma sindicável, pois, o que recorrente produz, nas suas alegações, é o esboço de uma reductio ad absurdum de todo o nosso sistema de fiscalização concreta da constitucionalidade normativa. Acresce que se o conceito de norma relevante para efeitos da delimitação do objeto idóneo dos recursos de constitucionalidade fosse aquele que está implícito nas alegações do recorrente, a viabilidade destes dei- xaria de se basear num pressuposto objetivo e controlável para ficar inteiramente dependente do maior ou menor engenho demonstrado pelo recorrente na redação do requerimento de interposição do recurso. Ao absurdo lógico somar-se-ia então a iniquidade processual. Por outro lado, a equação entre norma-objeto de controlo de constitucionalidade e norma-regra geral e abstrata é incompatível com a ideia, há muito assente na jurisprudência deste Tribunal, de que «para o efeito do disposto nos artigos 277.º e seguintes da Constituição [deve procurar-se] um conceito funcional de “norma”, ou seja, funcionalmente adequado ao sistema de fiscalização da constitucionalidade aí instituído.» De tal forma que «na averiguação e determinação do que seja “norma”, para esse efeito, não pode partir-se de uma noção material, doutrinária e aprioristicamente fixada, desse conceito. E, designadamente, não pode partir-se da ideia clássica que liga ao mesmo conceito notas da “generalidade” e da “abstração”.» (Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 20/85). Daqui resulta não apenas que pode haver normas nesse sentido funcio- nal que não são regras gerais e abstratas – nomeadamente as denominadas leis-medida ou leis-providência (vide Acórdãos n. os 26/85, 80/86, 157/88 e 365/91) – como também que pode haver normas no sentido doutrinário ou metodológico do termo que não são normas no sentido funcionalmente adequado ao exercí- cio da justiça constitucional. É justamente este último o caso daquelas razões das decisões jurisdicionais que não são recondutíveis a atos da autoridade pública dotados de força externa, ou seja, que o tribunal a quo não acolhe enquanto fonte de direito por força da sua subordinação ao princípio da legalidade mas que resultam da aplicação de direito para além da lei – obtido através de métodos como o preenchimento de conceitos indeterminados e a concretização de cláusulas gerais, o recurso à extensão analógica e à redução teleológica, ou a ponderação de princípios jurídicos – ou da interpretação de preceitos constitucionais diretamente aplicáveis, pela sua natureza ou por imposição legal, ao caso sub judice . Por outras palavras, suscetíveis de controlo pela juris- dição constitucional são, por princípio, apenas as razões heterónomas da justiça comum, aquelas normas infraconstitucionais que os tribunais aplicam em virtude da autoridade política, originária ou delegada, dos seus autores. Ora, as normas jurisdicionais ou «normas do caso» não têm essa natureza política porque não têm cará- ter inovatório ou eficácia externa, dado que o poder jurisdicional é o poder de aplicar direito pré-existente e a sentença produz efeitos apenas no caso concreto. Assim é mesmo que se considere a jurisprudência como fonte de direito, na medida em que os tribunais não têm em caso algum a autoridade de decretar ou articular uma norma válida para casos futuros, constituindo as suas afirmações sobre o fundamento ( ratio ) ou força (vis) jurídica das suas decisões meros obiter dicta . Cabe aos tribunais que venham eventualmente a invocar essas decisões como fonte de direito – o que aliás tende a acontecer apenas quando estas integram uma linha constante de jurisprudência – articular as normas que lhes subjazem. A autoridade dispositiva do poder judi- cial cinge-se por isso ao caso decidendo, o que significa que apesar de as suas decisões terem fundamentos normativos, ora heterónomos ora autónomos relativamente à função jurisdicional, não têm força normativa – não aprovam, decretam ou criam, ao contrário do que sustenta o recorrente, quaisquer normas, quaisquer critérios de conduta vinculativos no futuro. Todo o sistema português de controlo da constitucionalidade normativa assenta na ideia de que a juris- dição constitucional deve ser o juiz das normas e não o juiz dos juízes. O papel do Tribunal Constitucional na arquitetura da nossa democracia constitucional é o de controlar a atuação do legislador e dos seus suce- dâneos; os erros judiciais são corrigidos através do regime de recursos próprio da ordem jurisdicional a que as decisões pertencem. Não incidindo o presente recurso sobre um objeto normativo adequado a essa compreensão funcional da justiça constitucional, não pode o mesmo ser conhecido.

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