TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016
359 acórdão n.º 653/16 Esta jurisprudência incide, pois, sobre a relação entre a competência legislativa (reservada) da Assem- bleia da República e a competência legislativa do Governo. Ora, a questão colocada no presente processo não se inscreve nesse âmbito, mas antes no domínio da distinção entre o exercício da função legislativa e da função administrativa. Efetivamente, no presente processo, estamos perante a regulação por portaria da reclamação da conta de custas de parte, de forma inovatória face ao ato legislativo (ao RCP), que é invocada como sua base habilitante. O objeto de análise é, assim, o da constitucionalidade do exercício da função administrativa, através de um ato regulamentar, para emitir a norma questionada, face à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República e, consequentemente, à reserva de lei em sentido mate- rial (ou de função legislativa). De facto, se concluirmos que a matéria em questão está abrangida pela reserva decorrente do artigo 165.º, n.º 1, alínea b) , da Constituição, logicamente ela estará subtraída à função administrativa, de onde decorreria a desconformidade constitucional da norma objeto do presente processo. Sobre esse aspeto, no entanto, não podem ser retiradas consequências da citada jurisprudência. A orien- tação jurisprudencial referida não habilita a emissão de um ato regulamentar da função administrativa – no caso, uma portaria – inovatório face ao quadro legal vigente, em matéria abrangida por reserva de lei, só porque reproduz norma legal anterior à sua emissão e, entretanto, revogada. Assim, a eventual inconstitucio- nalidade orgânica da norma em causa não é afastada por esta alegadamente reproduzir o artigo 33.º-A, n.º 4, do CCJ. A questão prende-se, isso sim, com a eventual violação da reserva material de lei, matéria que será analisada no ponto seguinte. 10. A avaliação da compatibilidade da norma objeto do presente processo e a reserva de lei está relacio- nada com o segundo argumento do Ministério Público para sustentar a não inconstitucionalidade da norma objeto de julgamento. Este rejeita que seja «determinante o facto de a norma constar de Portaria e não de ato legislativo», pois «uma norma com o conteúdo daquela que está em causa não tinha que ser editada pela Assembleia da República ou pelo Governo no uso de autorização legislativa» (cfr. n.º 2.8. das alegações de recurso, fls. 36). Não se acompanha esta linha de argumentação. O Tribunal Constitucional já decidiu que a específica imposição de condições à possibilidade de recla- mação de questões atinentes a custas judiciais, como é o caso das custas de parte, afeta o direito fundamen- tal de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição. Efetivamente, o Acórdão n.º 678/14, ponto 10, afirma que é «pacífico o caráter restritivo que a norma em apreciação comportava face ao direito previsto no artigo 20.º da Constituição», tendo como ponto de partida o Acórdão n.º 347/09, que apreciou a constitucionalidade do artigo 33.º-A do Código das Custas Judiciais, que tinha um conteúdo “análogo” ao sob apreciação. O mesmo foi reiterado no Acórdão n.º 189/16, ponto 6. De facto, o Tribunal Constitucional tem vindo a afirmar, desde o Acórdão n.º 307/90, no ponto IV 4., «A Constituição da República, em nenhum dos seus preceitos, ou princípios dela imanentes, aponta para a gratuitidade da administração da justiça. Mas, se isto é certo, menos não é que, se for exigido, sem mais, a quem recorra aos tribunais para a defesa dos seus direitos ou interesses legítimos, exorbitantes quantitativos monetários, obviamente que, por essa via de certo modo indireta, se restringe tal recurso, mormente se quem desejar dele lançar mão não desfrutar de meios económicos que, sem grande sacrifício, possam suportar aqueles quantitativos (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada , 1.º vol., 2.ª edição, p. 182, que assinalam que ‘o reconhecimento do direito de recorrer aos tribunais seria meramente teórico se não garantisse que o direito a via judiciária não pode ser prejudicado pela insuficiência de meios económicos’)». A imposição, pela portaria, da necessidade de depósito da totalidade do valor da nota justificativa da conta de custas para que dela se possa reclamar, junto do tribunal, deve ser considerada, neste aspeto, um condicionamento restritivo inovatório do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, n.º 1, da
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