TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

342 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Pois é claro que pertence à liberdade da vontade da pessoa dedicar-se ou não ao exercício da prostituição. O que colocaria o Estado (detentor do jus puniendi ) na mais contraditória e perversa das situações: a de sacrificar a integridade pessoal invocando como legitimação o propósito de a tutelar!” (Figueiredo Dias, “O ‘direito penal do bem jurídico’ como princípio jurídico-constitucional implícito”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência , ano 145.º, maio-junho de 2016, p. 261). Nesta linha não podemos acompanhar o enten- dimento que a este propósito vem sendo sistematicamente sufragado pelo Tribunal Constitucional. Que tem procurado apoiar a legitimação material da incriminação na sua relação “com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem”, como se sustenta, entre outros, no Acórdão n.º 144/04 (no mesmo sentido, Acórdãos n. os 170/06, 396/07, 141/10, 559/11, 203/12, 149/14). Explicitando que a “intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma ‘autonomia para a dignidade’ das pessoas que se prostituem”. Uma consideração das coisas que é posta em crise quando confrontada com o recorte típico da incriminação. Que pune os factos mesmo nas constelações fácticas em que as pessoas que se prostituem, sendo maiores, o fazem com toda a liberdade e autonomia. O que obriga o Tribunal Constitucional a acolher-se a uma insustentável razão de paternalismo. Argumentando que “ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão de livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimensão especificamente íntima do outro não para fins dele próprio, mas para fins de terceiro” ( idem ibidem ). Para além desta (suposta) tutela da autonomia e da liberdade – contra o (efetivo) sacrifício da autonomia e da liberdade –, sobra ainda a ideia de prevenção do risco de exploração. Assim e ainda nos termos do mesmo acórdão: “o facto de a exploração legal não exigir, expressamente, como elemento do tipo uma concreta relação de exploração não significa que a prevenção desta não seja a motivação fundamental da incriminação a partir do qual o aproveitamento económico da prostituição de quem fomente, favoreça ou facilite a mesma exprima, tipicamente, um modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social” ( ibid ). Em vez de uma incriminação preordenada à tutela da autonomia e da liberdade sexual, teríamos então uma infração, concebida como crime de perigo abstrato e apostada em obviar ao perigo de um “modo social de exploração de uma situação de carência e desproteção social”. Bem podendo, por isso, acontecer que a prevenção do perigo abstrato de uma forma desviante de comportamento ou de condução da vida se faça à custa do sacrifício da liberdade e da autonomia sexual. Afinal de contas, à custa do sacrifício do único bem jurídico em nome do qual o legis- lador pode incriminar comportamentos humanos relacionados com a vida sexual das pessoas. É por isso que não posso acompanhar o entendimento de que a norma constante do artigo 169.º do Código Penal na versão vigente satisfaz as exigências de que a Constituição da República faz depender a legitimação material da criminalização. – Manuel da Costa Andrade. Anotação: O Acórdão n.º 144/04 está publicado em Acórdãos, 58.º Vol.

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