TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016
341 acórdão n.º 641/16 De modo que só fazendo uma interpretação restritiva da norma, no sentido de se aplicar apenas aos casos em que a vítima se encontra numa situação de necessidade económica e social, é possível afirmar que o tipo legal vida proteger o bem jurídico da liberdade sexual. Simplesmente, não pode considerar-se que a letra da lei é mais ampla que o seu espírito quando foi o próprio legislador que quis eliminar do texto da lei aquela exigência. Se o fez para proteção de outros bens jurídicos, não o deveria deixar inserido no capítulo dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual. E não é no valor da dignidade da pessoa humana que se pode encontrar o bem jurídico-constitu- cional digno de proteção penal. Como refere Figueiredo Dias, não é «essa a natureza do princípio, como não é essa a função de que surge investido em matéria penal; antes sim a de se erguer como veto inul- trapassável a qualquer atividade do Estado que não respeite aquela dignidade essencial e, deste modo, antes que como fundamento, como limite de toda a intervenção estadual» (O “direito penal do bem jurídico como princípio jurídico-constitucional implícito”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 145, p. 260). Portanto, admitindo que a conduta de quem, profissionalmente, ou com intenção lucrativa, fomenta, favorece ou facilita o exercício de prostituição por pessoa que se encontra numa situação de necessidade eco- nómica e social necessita de tutela penal, com entendo, então só a introdução desse último elemento no tipo legal colocará o preceito em conformidade com a Constituição. – Lino Rodrigues Ribeiro. DECLARAÇÃO DE VOTO Votei vencido por estar convencido de que a norma de incriminação e punição do lenocínio constante do n.º 1 do artigo 169.º do Código Penal é contrária à Constituição, por violação do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República. E é assim porquanto a incriminação da conduta típica não está preordenada à salvaguarda – menos ainda é para tanto necessária – de quaisquer “direitos ou interesses cons- titucionalmente protegidos”. Ou dito em linguagem da doutrina penal, não é necessária à proteção de qual- quer bem jurídico. Bem jurídico que não se descortina na pertinente área de tutela típica. Noutra perspetiva, estamos perante uma manifestação concreta dos chamados “crimes sem vítima”, no sentido criminológico do termo, na linha da E. Shur ( victimless crimes ou crimes without victims. Cf. Edwin Schur, Crimes Without Victims: Deviant Behavior and Public Policy, Prentice Hall inc.1965). É seguramente assim a partir da reforma de 1998. Que inter alia eliminou o inciso –“exploração de situação de abandono ou de necessidade económica” – constante da versão originária (de 1982/1995). E deste modo abriu deliberadamente mão do momento da factualidade típica que associava a infração à ofensa à liberdade sexual e deixou atrás de si uma incriminação exclusivamente votada à punição de “quem, pro- fissionalmente ou com intenção lucrativa, fomentar, favorecer ou facilitar” uma prática em si mesma irrele- vante e indiferente para o direito penal – a prostituição. Assim, o afastamento da liberdade sexual da área de proteção da norma deixa apenas em campo a prevenção ou repressão do pecado, um exercício de moralismo atávico, com que o direito penal do Estado de direito da sociedade secularizada e democrática dos nossos dias nada pode ter a ver. Uma consideração das coisas contra a qual não pode pertinentemente invocar-se a ideia de obviar a perigos contra a dignidade ou a autonomia das pessoas – homens ou mulheres – envolvidas na prostituição. Na certeza de que a incriminação é que pode, ela própria, configurar um atentado perverso à dignidade ou autonomia das pessoas. Que sendo adultas, esclarecidas e livres – no fundo a situação típica pressuposta pela incriminação – devem poder legitimamente escolher conduzir a sua vida tanto à sombra da “virtude” como do “pecado”. Uma escolha insindicável, que devem poder levar à prática, inteiramente resguardados contra a intromissão do direito penal. De outro modo e acolhendo-nos à síntese de Figueiredo Dias, “teríamos uma situação absolutamente anormal e incompreensível: a de o direito penal, pretendendo tutelar o bem jurídico da eminente dignidade (sexual) da pessoa, sacrificá-lo ou violá-lo justamente em nome daquela dignidade.
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