TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

338 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Não se concebe, assim, uma mera proteção de sentimentalismos ou de uma ordem moral convencional particular ou mesmo dominante, que não esteja relacionada, intrinsecamente, com os valores da liberdade e da integridade moral das pessoas que se prostituem, valores esses protegidos pelo Direito enquanto aspetos de uma convivência social orientada por deveres de proteção para com pessoas em estado de carência social. A intervenção do Direito Penal neste domínio tem, portanto, um significado diferente de uma mera tutela jurídica de uma perspetiva moral, sem correspondência necessária com valores essenciais do Direito e com as suas finalidades específicas num Estado de direito. O significado que é assumido pelo legislador penal é, antes, o da proteção da liberdade e de uma “autonomia para a dignidade” das pessoas que se prostituem. Não está, consequentemente, em causa qualquer aspeto de liberdade de consciência que seja tutelado pelo artigo 41.º, n.º 1, da Constituição, pois a liberdade de consciência não integra uma dimensão de liberdade de se aproveitar das carências alheias ou de lucrar com a utilização da sexualidade alheia. Por outro lado, nesta perspetiva, é irrelevante que a prostituição não seja proibida. Na realidade, ainda que se entenda que a prostituição possa ser, num certo sentido, uma expressão da livre disponibilidade da sexualidade individual, o certo é que o aproveitamento económico por terceiros não deixa de poder exprimir já uma interferência, que comporta riscos intoleráveis, dados os contextos sociais da prostituição, na autonomia e liberdade do agente que se prostitui (colocando-o em perigo), na medida em que corresponda à utilização de uma dimen- são especificamente íntima do outro não para os fins dele próprio, mas para fins de terceiros. Aliás, existem outros casos, na Ordem Jurídica portuguesa, em que o autor de uma conduta não é incriminado e são incri- minados os terceiros comparticipantes, como acontece, por exemplo, com o auxílio ao suicídio (artigo 135.º do Código Penal) ou com a incriminação da divulgação de pornografia infantil [artigo 172.º, n.º 3, alínea e) , do Código Penal], sempre com fundamento na perspetiva de que a autonomia de uma pessoa ou o seu consentimento em determinados atos não justifica, sem mais, o comportamento do que auxilie, instigue ou facilite esse comportamento. É que relativamente ao relacionamento com os outros há deveres de respeito que ultrapassam o mero não interferir com a sua autonomia, há deveres de respeito e de solidariedade que derivam do princípio da dignidade da pessoa humana.  7. Por outro lado, que uma certa “atividade profissional” que tenha por objeto a específica negação deste tipo de valores seja proibida (neste caso, incriminada) não ofende, de modo algum, a Constituição. A liber- dade de exercício de profissão ou de atividade económica tem obviamente, como limites e enquadramento, valores e direitos diretamente associados à proteção da autonomia e da dignidade de outro ser humano (arti- gos 47[ ].º, n.º 1 e 61.º, n.º 1, da Constituição). Por isso estão particularmente condicionadas, como objeto de trabalho ou de empresa, atividades que possam afetar a vida, a saúde e a integridade moral dos cidadãos [artigo 59.º, n.º 1, alíneas b) e c) ou n.º 2, alínea c) , da Constituição]. Não está assim, de todo em causa a violação do artigo 47.º, n.º 1, da Constituição. Nem também tem relevância impeditiva desta conclusão a aceitação de perspetivas como a que aflora no pronunciamento do Tribunal de Justiça das Comunidades (Sentença de 20 de novembro de 2001, Processo n.º 268/99), segundo a qual a prostituição pode ser enca- rada como atividade económica na qualidade de trabalho autónomo (cfr., em sentido crítico, aliás, Massimo Luciani, “Il lavoro autonomo de la prostituta”, em Quaderni Costituzionali, anno XXII, n.º 2, Giugno 2002, p. 398 e segs.). Com efeito, aí apenas se considerou que a permissão de atividade das pessoas que se prostituem nos Estados membros da Comunidade impede uma discriminação quanto à autorização de permanência num Estado da União Europeia, daí não decorrendo qualquer consequência para a licitude das atividades de favorecimento à prostituição.”» 8. As considerações antecedentes não implicam, obviamente, que haja um dever constitucional de incri- minar as condutas previstas no artigo 170.º, n.º 1, do Código Penal. Corresponde, porém, a citada incri- minação a uma opção de política criminal (note-se que tal opção, quanto às suas fronteiras, é passível de discussão no plano de opções de política criminal – veja-se Anabela Rodrigues, Comentário Conimbricense , I, 1999, p. 518 e ss.), justificada, sobretudo, pela normal associação entre as condutas que são designadas como lenocínio e a exploração da necessidade económica e social, das pessoas que se dedicam à prostitui- ção, fazendo desta um modo de subsistência. O facto de a disposição legal não exigir, expressamente, como

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