TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

30 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Sucede, isso sim, que, para o tribunal recorrido, a aludida ilegitimidade da omissão de pagamentos devidos não é condição suficiente para, à luz do princípio da separação de poderes, atribuir à Administração, em paralelo com o poder de aplicar coimas, o poder de ordenar tais pagamentos. Isto porque, seguindo a posição doutrinária do Autor referido na sentença, uma coisa é a sanção que serve como advertência ou repri- menda pela inobservância de “deveres impostos em ordem à preservação de uma certa ‘ordenação social’ ”, e que, desse modo, prossegue finalidades preventivas negativas ou de dissuasão, em relação à generalidade das pessoas e ao próprio infrator; outra, diferente (e já não sancionatória), é a declaração do direito (contratual) de uma pessoa determinada e a exigência da sua satisfação, que corresponde já à composição de um litígio entre devedor e credor. 12. Contudo, uma tal abordagem desconsidera o sentido inerente ao tratamento contraordenacional da violação dos créditos pecuniários laborais do trabalhador – sendo certo que esse tratamento, em si mesmo, não está em causa. Na verdade, e em geral, a qualificação como contraordenação da omissão de cumprimento de um dever, ainda que emergente de um contrato ou de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não pode deixar de publicizar esse mesmo dever, no sentido de atribuir interesse público ao seu cumpri- mento. Entendida a coima e o correspondente ilícito como matéria especialmente administrativa – e, por isso mesmo, sendo constitucionalmente legítimo a atribuição à Administração da “primeira palavra”, sem prejuízo da admissibilidade de um posterior reexame judicial (nesse sentido, vide, por exemplo, os Acórdãos n. os 158/92 e 278/11) –, já que está em causa dissuadir a violação de normas integradas no bloco de lega- lidade, não se vislumbra porque é que, no caso de a contraordenação se traduzir na omissão de um dever, a imposição positiva do respetivo cumprimento não deva ser entendida como correspondendo também à realização de um interesse público, designadamente a remoção da situação de ilegalidade que se pretendeu prevenir mediante a cominação da coima. No caso especial dos direitos dos trabalhadores, a situação ainda é mais clara, em larga medida devido à forte limitação legal e constitucionalmente imposta à autonomia privada no domínio do direito do trabalho. Nesse sentido, afirmou este Tribunal no seu Acórdão n.º 94/15: «[N]o âmbito do direito do trabalho o princípio da autonomia privada não tem a mesma amplitude que no direito civil. A este respeito, António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 16.ª edição, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 22-23), sustentando uma posição que é comum na doutrina, refere o seguinte: “O Direito do Trabalho apresenta-se, assim, ao mesmo tempo, sob o signo da proteção do trabalhador e como um conjunto de limitações à autonomia privada individual. O contrato de trabalho é integrado por uma constelação de normas que vão desde as condições pré-contratuais, passam pelos direitos e deveres recíprocos das partes, atendem com particular intensidade aos termos em que o vínculo pode cessar, e vão até aspetos pós- -contratuais (como a preferência na readmissão e a abstenção de concorrência). É, pois, traço de caráter do Direito do Trabalho a desvalorização da estipulação individual das condições de trabalho – a chamada “individualização” do conteúdo da relação de trabalho. Se a liberdade formal do candidato ao emprego é pressuposto do contrato, como meio de acesso ao trabalho livre – com exclusão do trabalho forçado, servil ou compelido –, a verdade é que a liberdade de estipulação está, pelo lado do trabalhador, originariamente condicionada. As condições do contrato, na medida em que se encontram na disponibilidade dos contraentes, são, em regra, ditadas pelo empregador, a quem cabe, também, a iniciativa do processo negocial e, depois, já na fase de execução do contrato, a determinação concreta da posição fun- cional do trabalhador. A atuação do Direito do Trabalho visa enquadrar, através de um sistema de limitações imperativas, o protagonismo do empregador na definição dos termos em que a relação de trabalho se vai desenvolver.”

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