TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016
24 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Daí que se «os atos próprios de cada função devem provir, em princípio, dos órgãos correspondentes a essa função», são descortináveis, no direito positivo, «algumas interpenetrações e inevitáveis zonas cinzentas» (assim, vide Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo V, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coim- bra, 2010, p. 35). No tocante à função jurisdicional, a Constituição comete o seu exercício aos órgãos de soberania tri- bunais (artigos 110.º, n.º 1, e 202.º, n.º 1). Sendo certo que o tribunal não se identifica com o juiz, há no entanto decisões e atos que só este último pode praticar (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição , cit., anot. I ao artigo 202.º, p. 506). É nisto que se traduz a reserva de juiz relativamente ao exercício da função jurisdicional ( reserva de jurisdição ): «Tribunal [tem neste artigo 202.º] um sentido jurídico-funcional – daí a epígrafe “função jurisdicional” – conexionada com um sentido inerente à função de jurisdictio e uma função jurídico-material ( jurisdictio como atividade do juiz materialmente caracterizada). A atribuição da função jurisdicional aos tribunais, nos termos do n.º 1, radica no facto de as decisões dos tribunais serem imputadas, para efeitos externos, a um tribunal […] e não a um juiz. Isto não perturba o entendimento de que neste artigo (202.º-1) a Constituição estabelece uma reserva de jurisdição no sentido de que dentro dos tribunais só os juízes podem ser chamados a praticar atos materialmente jurisdicionais. O conceito constitucional de função jurisdicional pressupõe, portanto, a atribuição da função jurisdicional a determinadas entidades (magistrados) que atuam estritamente vinculados a certos princípios (independência, legalidade, imparcialidade).» (vide Autores cits., ibidem , anot. VI ao artigo 202.º, p. 509). Por outro lado, o n.º 2 do artigo 202.º identifica o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados (sobre o sentido e alcance possível daquelas três áreas, cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada , Tomo III, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, anot. IV ao artigo 202.º, pp. 18-19; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição , cit., anot. VII ao artigo 202.º, p. 509). Como se salientou por exemplo no Acórdão n.º 230/13, «o entendimento comum é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdi- ção, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusi- vamente dos tribunais. Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito (sobre os diferentes níveis ou graus de reserva, cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, Coimbra, 7.ª edição, pp. 668-670; Vieira de Andrade, “A Reserva do Juiz e a Intervenção Ministerial em Matéria de Fixação das Indemnizações por Nacionalizações”, in Scientia Ivridica, Tomo XLVII, n. os 274/276, julho/dezembro, 1998, p. 224).» Nesse mesmo Acórdão n.º 230/13, o Tribunal deu conta dos diferentes entendimentos de que é susce- tível o alcance da reserva jurisdicional: «Fora dos casos individualizados na Constituição em que há lugar a uma reserva absoluta de jurisdição, o que sucederá não apenas em matéria penal mas sempre que estejam em causa direitos de particular importância jurídico-constitucional a cuja lesão deve corresponder uma efetiva proteção jurídica, poderá admitir-se que o direito de acesso aos tribunais seja assegurado apenas em via de recurso, permitindo-se que num momento inicial o litígio possa ser resolvido por intervenção de outros poderes, caso em que se poderá falar numa reserva relativa de jurisdição ou reserva de tribunal» (itálico adicionado; vide também as sínteses de Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição, cit., anot. VII ao artigo 202.º, pp. 25-31; e Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição, cit., anot. VIII ao artigo 202.º, pp. 509-510).
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