TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016
195 acórdão n.º 583/16 g) Portanto, a interpretação professada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido, negando qualquer direito de preferência na venda do imóvel locado, consubstancia uma solução absolutamente desproporcional e profundamente injusta para inúmeros inquilinos, mormente cidadãos idosos como os AA., que vêm habitando há décadas andares de prédios indivisos. h) E tutelaria de modo diverso situações substantivamente iguais, discriminando negativamente o arrendatário que, não obstante usufruir de parte de prédio não constituído em propriedade horizontal, tem relativamente a ela contrato de arrendamento válido e o frutifica e dele retira benefícios, mesmo de índole social, presumivel- mente tão relevantes como os oriundos de contratos incidentes sobre fração juridicamente autónoma. i) Não é logico e fere o sentido de justiça do cidadão comum, que se aceite a celebração de um contrato de arren- damento de uma parte legalmente indivisa, mas materialmente autonomizada, e depois se lhe tolham os efeitos jurídicos, designadamente a atribuição de preferência na compra e venda do imóvel locado. j) A existência de um direito de preferência na aquisição de todo o prédio não onera a situação do senhorio, ao qual será indiferente vender o imóvel a A ou a B, visto que o direito de preferência não concede ao preferente qualquer privilégio de redução do preço de venda; pelo contrário, a ausência de um direito de preferência pos- sibilitará especulações imobiliárias suscetíveis de prejudicar os inquilinos. k) Por todo exposto, é forçoso concluir pela inconstitucionalidade da norma do artigo 1091.º, n.º 1, do CC, na interpretação propugnada pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão recorrido, por deixar ao arbítrio do senhorio – dependendo da opção deste constituir a propriedade horizontal sobre o prédio – a existência de direito de preferência do arrendatário na compra e venda do imóvel locado, em violação do princípio da igual- dade consagrado no artigo 13.º, n.º 1, da CRP, que proíbe tratamento desigual das situações essencialmente iguais dos inquilinos de parte indivisa e de fração autónoma de prédio urbano. l) O direito de preferência assumiu-se como um instrumento de proteção do arrendatário habitacional, enquanto contraente tendencialmente mais débil, e como uma concretização do dever social que recai sobre o Estado de adotar uma política de acesso à habitação própria, nos termos do artigo 65.º, n.º 3 da CRP. m) Aquando da aprovação do NRAU, pela Lei n.º 6/2006 de 27 de fevereiro, não foi invocada qualquer razão substantiva para um retrocesso na tutela da situação dos inquilinos de prédios urbanos indivisos, nem refe- renciada qualquer opção do Estado em matéria de política de habitação ou condicionamento dos recursos financeiros suscetível de determinar a necessidade, muito menos a adequação, de uma restrição legal do direito de preferência dos arrendatários. n) Sendo que da hermenêutica do n.º 3 do artigo 65.º da CRP, suscetível de lhe atribuir um sentido normativo útil, para além do que já decorre da alínea c) , do n.º 2 – segundo os cânones do princípio do aproveitamento das leis e da presunção da racionalidade da legislação (plasmados no artigo 9.º, n.º 3, do CC, mas também aplicáveis na interpretação da Constituição, enquanto Lei Fundamental) – parece resultar que, na estruturação do regime jurídico do arrendamento urbano, o legislador ordinário deverá prever o direito de preferência do arrendatário na aquisição do imóvel locado, como meio adequado de promover o acesso à propriedade da habitação por quem se encontra numa situação de ligação estreita aos prédios. o) Pelo que uma interpretação restritiva da alínea a) do n.º 1 do artigo 1091.º, do CC, que exclua o direito de pre- ferência dos inquilinos, tão só por habitarem em andares de prédios indivisos, seria desconforme ao programa constitucional de promoção do acesso à habitação própria, configurando um ablação injustificada e despropor- cionada desse direito fundamental dos arrendatários urbanos, em manifesta violação do direito fundamental consagrado no artigo 65.º, n. os 1 e 3, da CRP p) Impondo-se proceder a uma interpretação conforme à Constituição do disposto no artigo 1091.º, n.º 1, do CC, no sentido de que os arrendatários de parte de prédio urbano não constituído em propriedade horizontal continuam a ter direito de preferência na venda ou dação em pagamento do imóvel locado. q) A Constituição garante um direito de apropriação que incumbe ao Estado promover, sendo amplo o conceito constitucional de propriedade privada, não se esgotando no direito real de propriedade, abrangendo a genera- lidade dos direitos patrimoniais.
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