TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

18 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Recorda-se a posição crítica do Prof. Cavaleiro de Ferreira, primeiro no seu direito Penal Português e depois nas Lições de Direito Penal onde, invocando o artigo 205.º da CRP (versão de 1982) e reservando para os Tribunais “a aplicação da lei em todas as relações jurídicas concretas, quer entre os indivíduos, quer entre estes e o Estado” concluía que “será inconstitucional o julgamento pela Administração das contraordenações e a equiparação a uma sentença duma decisão administrativa..”. Contra esta posição se pronunciou o Prof. Figueiredo Dias para quem “sendo a coima uma sanção dirigida a advertir o cumprimento de deveres e obrigações que relevem apenas da preservação de uma certa “ordenação social” torna-se imediatamente compreensível que o seu processamento e a sua aplicação devam caber, como estipula o artigo 33.º “às autoridades administrativas” .. Com isto – e o ponto é muito importante na perspetiva jurídico – constitucional – não se penetra ainda verdadeiramente na “administração da justiça” ou na “função materialmente judicial” que a Constituição atribui em exclusivo aos tribunais”. Ora, com a atribuição às autoridades administrativas da função, não já de aplicar sanções, mas verdadei- ramente de condenar no pagamento dos quantitativos em dívida aos trabalhadores, parece manifesto que a Administração (no caso a IGT) está já a jurisdizer, a “dizer” o direito, a administrar ajustiça, a invadir o campo próprio da atuação dos tribunais e a penetrar na esfera materialmente judicial que a Constituição reserva aos Tribunais enquanto órgãos de soberania (artigo 202.º da CRP). Parece, por isso, haver também violação do princípio da separação e independência dos órgãos de soberania, mais concretamente o seu corolário da ade- quação entre órgãos e funções na medida em que um órgão, o Governo, a quem incumbe o poder executivo, concretamente a Administração do Trabalho, invade uma parcela de um outro órgão, os Tribunais, a quem cumpre o judicial, com desrespeito do artigo 111.º da norma normarum . Na realidade, como ensina J. J. Canotilho, da teoria do núcleo essencial das funções pode retirar-se a conclusão de que “a nenhum órgão podem ser atribuídas funções das quais resulte o esvaziamento das fun- ções materiais especialmente atribuídas a outro”, princípio que “tem sido invocado na delimitação da função judicial, considerando a doutrina ser este um dos domínios em que se deve aplicar rigorosamente uma teoria material defunções”. Neste contexto, parece caber sem grande margem de dúvida a constatação de que a atribuição à Admi- nistração da obrigatoriedade de a decisão de aplicação da coima conter a “condenação” do pagamento das quantias em dívida – embora a lei, certamente por pudor, fale simplesmente em conter a ordem de pagamento – o que, além do mais, exige necessariamente a decisão administrativa sobre existência do respetivo direito na esfera jurídica do trabalhador e a prévia liquidação dessas quantias, ofende o referido princípio. Na realidade, se a Administração retira aos tribunais de trabalho a função de decidir sobre os direitos dos trabalhadores com incidência retributiva, mesmo que apenas e só em sequência duma ação inspetiva, aquele órgão de soberania vê-se esvaziado das funções próprias do cumprimento da sua missão. Outra coisa não resulta, ainda, do mesmo princípio da independência na sua vertente de exclu- sividade da função de julgar, conforme resulta da lição do Prof. Gomes Canotilho: “a independência judicial postula o reconhecimento de uma reserva de jurisdição entendida como reserva de um conteúdo material típico da função jurisdicional. Esta reserva de jurisdição atua simultaneamente como limite de atos legislativos e de decisão administrativa, tornando-os inconstitucionais quando tenham conteúdo materialmente jurisdicional”. À mesma conclusão se chegaria, ainda, se se invocasse que neste âmbito, diferentemente do que se passa com a aplicação de coimas em que a constitucionalidade se basta com a atribuição aos tribunais do “monopólio da última palavra”, a estes órgãos de soberania é constitucionalmente devido o “monopólio da primeira palavra” ou a reserva absoluta de jurisdição.” [cfr. Autor cit., “Violação dos Instrumentos de Regu- lamentação Coletiva (Breves Apontamentos sobre a Interpretação e Constitucionalidade do artigo 687.º do Código do Trabalho) in Prontuário de Direito do Trabalho , n.º 69, setembro-dezembro de 2004, Coimbra Editora, pp. 138 e segs.]

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