TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 97.º Volume \ 2016

16 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL IV – Não se pode perder de vista a necessária conexão entre a contraordenação punida pela coima aplicada e a dívida ao trabalhador objeto da ordem de pagamento prevista na norma sob apreciação: portanto, a imposição administrativa do pagamento não se limita a dirimir um litígio contratual nem a garantir o cumprimento de uma simples obrigação inter partes; para além disso, e, sobretudo, o mesmo ato impositivo traduz-se numa injunção para fazer o que indevidamente foi omitido e que, como tal, consubstancia o ilícito de mera ordenação social punido com a coima aplicada. V – A qualificação como contraordenação da omissão de cumprimento de um dever, ainda que emer- gente de um contrato ou de um instrumento de regulamentação coletiva de trabalho, não pode deixar de publicizar esse mesmo dever, no sentido de atribuir interesse público ao seu cumpri- mento; entendida a coima e o correspondente ilícito como matéria especialmente administrativa, já que está em causa dissuadir a violação de normas integradas no bloco de legalidade, não se vislumbra porque é que, no caso de a contraordenação se traduzir na omissão de um dever, a imposição positiva do respetivo cumprimento não deva ser entendida como correspondendo também à realização de um interesse público, designadamente a remoção da situação de ilega- lidade que se pretendeu prevenir mediante a cominação da coima; no caso especial dos direitos dos trabalhadores, a situação ainda é mais clara, em larga medida devido à forte limitação legal e constitucionalmente imposta à autonomia privada no domínio do direito do trabalho; acresce a importância autónoma da retribuição, justificativa de medidas de proteção especiais e com uma incidência imediata no plano da concorrência entre as empresas; por isso, o direito à retribuição é um direito de natureza análoga aos direitos, liberdades e garantias, que, de resto, o Estado tem o dever de proteger. VI – A defesa da concorrência constitui um dos instrumentos essenciais da política económica, sendo-lhe comummente reconhecidas virtualidades nos planos da garantia dos direitos dos consumidores e da eficiência do mercado; ora, a omissão de pagamento dos quantitativos legalmente devidos por uma empresa aos seus trabalhadores, ao diminuir os custos fixos com pessoal, beneficia-a ilegitimamente perante as demais empresas suas concorrentes. VII – Qualquer uma destas duas perspetivas é, por si só, justificativa da relevância juspublicística da ordem de pagamento prevista na norma sub iudicio , porquanto a respetiva emissão visa assegurar não apenas a defesa da legalidade democrática por via da prevenção negativa, como a proteção de direitos funda- mentais dos cidadãos e o funcionamento eficiente dos mercados por via da garantia de uma equilibra- da concorrência entre as empresas. VIII – Embora a solução de conjugar a emissão da ordem de pagamento em simultâneo com a aplicação da coima não constitua um modo de proteção constitucionalmente devido dos interesses e valores com relevância constitucional tutelados pela imposição do dever cujo incumprimento corresponde à contraordenação a punir, tal proteção, além de constitucionalmente justificada, também não é constitucionalmente proibida, correspondendo antes a uma solução possível concretizadora de deveres de proteção, que o legislador democrático definiu no exercício da sua liberdade de confor- mação.

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