TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 95.º Volume \ 2016

250 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL ao ilícito penal, que dá origem a um sistema punitivo próprio, com espécies de sanção, com procedimentos punitivos e agentes sancionadores distintos, obsta a que se proceda a uma transposição automática e impon- derada para o direito de mera ordenação social dos princípios constitucionais que regem a legislação penal. Tais ilícitos não se distinguem apenas pelo diferente tipo de cominação – uma coima ou uma pena – mas sobretudo por um critério material que atende à diferença de bens jurídicos protegidos e à diferente resso- nância ética dos ilícitos. Num critério de distinção situado num plano ético, como o seguido por Figueiredo Dias, é possível distinguir condutas a que «antes e independentemente do desvalor da ilicitude, corres- ponde, e condutas a que não corresponde, um mais amplo desvalor moral, cultural ou social. A conduta em si mesma, independentemente da sua proibição legal, é no primeiro caso axiologicamente relevante, no segundo caso axiologicamente neutra. O que no direito das contraordenações é axiologicamente neutro não é o ilícito, mas a conduta em si mesma, divorciada da proibição legal – sem prejuízo de, uma vez conexio- nada com este, ela passar a constituir substrato idóneo de um desvalor ético-social» (cfr. “O movimento da descriminalização e o ilícito de mera ordenação social”, in Eduardo Correia, et al. Direito penal económico e europeu: textos doutrinários, Vol. I, Coimbra Editora, 1998, pp. 26 e 27). Ora, esta distinção tem relevância no relacionamento desses direitos com a ordem jurídico-constitucio- nal. Como refere o mesmo autor «são diferentes os princípios jurídico-constitucionais, materiais e orgâni- cos, a que se submetem a legislação penal e a legislação das contraordenações». A submissão do direito das contraordenações às garantias essenciais do direito penal, isto é, às garantias relativas à segurança, certeza, confiança e previsibilidade dos cidadãos, não significa que as normas e princípios constitucionais em matéria penal tenham que ser aplicadas ao domínio contraordenacional com a mesma intensidade e com as mesmas exigências. A indiferença ético-social das condutas que integram as contraordenações coloca diferente grau de exigência ao legislador ordinário na configuração dos respetivos ilícitos, já que não se trata de prevenir ou reprimir condutas ofensivas de bens jurídico-constitucionais, independentemente da sua proibição legal, mas sim de advertir ou admoestar a inobservância de certas proibições ou imposições legislativas.  Para efeitos de distinção entre ambos os ilícitos, a jurisprudência do Tribunal Constitucional tem seguido fundamentalmente os critérios da ressonância ética e dos diferentes bens jurídicos em causa (Acórdãos n. os 158/92, 344/93, 469/97, 461/11, 537/11, 45/14 e 180/14). E com fundamento na diferente natureza do ilí- cito, da censura e das sanções, tem considerado que os princípios constitucionais com relevo em matéria penal não valem com a mesma extensão e intensidade no domínio contraordenacional. Não obstante estar consoli- dado na jurisprudência constitucional que o direito sancionatório público, enquanto restrição de direitos fun- damentais, participa do essencial das garantias consagradas explicitamente para o direito penal, tem-se decidido reiteradamente que os princípios que orientam o direito penal não são automaticamente aplicáveis ao direito de mera ordenação social (Acórdãos n. os 344/93, 278/99, 160/04, 537/11 e 85/12). 6. Assim acontece com a extensão dos princípios da legalidade e da tipicidade ao domínio contraorde- nacional. O princípio da legalidade criminal, consagrado nos n. os 1, 3 e 4 do artigo 29.º da CRP, tem por fun- ção garantir que os cidadãos não fiquem sujeitos ao arbítrio e aos excessos do poder punitivo do Estado. Traduzindo-se o seu conteúdo essencial em não poder haver crime, nem pena que não resultem de uma lei prévia, estrita e certa, a liberdade pessoal dos cidadãos fica assim garantida perante intervenções estaduais que não se contenham dentro de um círculo de atuação estritamente delimitado. A garantia pessoal de não punição fora do domínio da legalidade, que a CRP inclui no catálogo dos direitos, liberdades e garantias, não se basta com a existência de lei prévia que defina os pressupostos da responsabilidade criminal, exige ainda que a lei especifique suficientemente os factos que constituem o tipo legal de crime e o tipo de pena que lhe cabe. Neste sentido, o princípio da legalidade, na qualidade de parâmetro constitucional, impõe que a norma penal seja precisa e determinada. Como refere Figueiredo Dias, «importa que a descrição da matéria proibida e de todos os outros requisitos de que dependa em concreto uma punição seja levada até a um ponto em que se tornem objetivamente determináveis os comportamentos proibidos e sancionados e, consequentemente,

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