TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 95.º Volume \ 2016
201 acórdão n.º 55/16 acento tónico na questão da não existência, não deixa de ser significativa a circunstância de esta se esgotar numa construção intelectual, sem qualquer repercussão efetiva na existência de alguém, enquanto dado de facto que não sofre alteração alguma com o estabelecimento de uma indemnização em dinheiro. Vale, a este respeito, a constatação de que a proteção do direito à vida, no contexto do n.º 1 do artigo 24.º da CRP, se refere à tutela “[…] da existência vivente, físico-biológica”, “[abrangendo] não apenas a vida das pessoas, mas também a vida pré-natal, ainda não investida numa pessoa, a vida intrauterina […]” (J. J. Gomes Canotilho, Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 2007, pp. 447 e 449; cfr. o Acórdão n.º 75/10), não exclui, no quadro da afirmação dessa inviolabilidade, que a aferição da existência de um dano envolva uma operação intelectual de cariz contrafactual que identifique, como hipóteses não verificadas, as várias opções não excluídas pela ordem jurídica que se colocariam aos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, da qual não foram informados durante a gestação, caso essa informação – da qual eram contratualmente credores – lhes tivesse sido fornecida em determinadas circunstâncias de tempo. É neste sentido que se afirmou – e ora se reafirma – estar aqui em causa, na indem- nização dita por wrongful birth , o ressarcimento dos pais pelo dano resultante da privação do conhecimento de um elemento importante no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando o conhecimento dessa circunstância ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções. Está em causa, pois – como também antes se referiu, supra no item 2.2. –, a interferência pelo médico, através de uma prestação contratual inexata, porque desconforme à que era devida, na liberdade de realização, pelos pais, das suas escolhas reprodutivas de forma autónoma e informada. Aliás, relativamente à pretensão de associar à questão do aborto ao estabelecimento de um dever de indemnizar com esta base, não deixaremos de sublinhar – e trata-se de uma evidência – que a simples caracterização deste dever nenhum efeito produz ou potencia quanto às questões colocadas a respeito do debate sobre a despenalização, em determinadas condições, da interrupção voluntária da gravidez. De facto, nenhuma interrupção da gravidez ocorre ou ocorrerá por via da fixação de uma indemnização em dinheiro no quadro aqui traçado, sendo certo que este quadro assume, quanto à tutela indemnizatória conferida, a absoluta impossibilidade de qualquer forma de “reparação natural” de um dano em que o fator tempo, entre- tanto esgotado, assumia um papel central. Isto mesmo é salientado por Paulo Mota Pinto: «[…] Quanto às objeções especificamente ético-jurídicas à indemnização, deve rejeitar-se, a nosso ver, a que assenta na indisponibilidade da vida humana, pelo menos para quem entenda que essa indisponibilidade (configurando também uma limitação à liberdade do titular) assenta, decisivamente, na irreversibilidade da disposição da vida, implicando uma destruição irremediável do centro autónomo de decisão que é objeto de proteção jurídica. Como não está em causa qualquer ‘reconstituição natural’, consistente na eliminação da criança deficiente – conclusão, que, apesar dos trágicos precedentes históricos, deverá hoje ser óbvia, mas que também não impede uma indemnização por equivalente –, ou o sancionamento da eficácia jurídica de um ato tendente a tal disposição, não se vê como pode a indisponibilidade da vida humana ser afetada por se reconhecer uma indemnização à própria criança (ou aos pais). […]» [“Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’ (‘ wrongful birth ’ e ‘wrongful life’ )”, cit., pp. 935/936]. 2.3.5. Assente que a aceitação de uma indemnização deste tipo (por wrongful birth ) não afeta a invio- labilidade da vida humana, estabelecida no artigo 24.º, n.º 1, do texto constitucional, importa agora consi- derar o argumento adicional de inconstitucionalidade esgrimido pelos recorrentes, tomando por referência uma invocada violação do artigo 67.º, n.º 2, alínea d) , da CRP. Este argumento é apresentado à consideração do Tribunal nos termos seguintes:
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