TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 95.º Volume \ 2016
196 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Na fase inicial da discussão desta questão – vimos que isso ocorreu em ambiente judicial nos Estados Unidos na década de sessenta do século passado –, este paradoxo conceptual conduziu maioritariamente à rejeição das pretensões indemnizatórias construídas com esta base [cfr. Erin Nelson, Law, Policy and Repro- ductive Autonomy, cit., pp. 205/209, este Autor refere, aludindo especificamente à experiência norte-ame- ricana e às ações por wrongful life , a um sentimento inicial, expresso em algumas decisões, de “desconforto judicial e de incerteza” no tratamento deste tipo de situações, sentimento do qual a própria designação encontrada, indisfarçadamente despectiva, constituiria manifestação (p. 206, cfr., infra , item 2.3.1.1.)]. A paulatina abertura a pretensões indemnizatórias deste tipo alicerçou-se na desvalorização do sentido do paradoxo da não-existência, por via da caracterização da realidade em causa nessas ações como subs- tancialmente distinta nos seus pressupostos da afirmação hipotética contida na formulação do paradoxo. Tratar-se-ia nestes casos, e mais claramente até nas situações por wrongful birth , de fixar uma indemnização, necessariamente fora de qualquer quadro de “reconstituição natural”, por danos atuais imutáveis, sempre atribuída em função de uma efetiva situação de existência e sempre estabelecida por referência a desvalores decorrentes das peculiaridades da atividade de médicos agindo no quadro de um diagnóstico pré-natal. E tudo isto, enfim, com base na consideração de não se justificar deixar fora da tutela indemnizatória a má- -prática médica nestas situações, vistas como correspondentes a obrigações de resultado, e de não ser justo, igualmente, não conferir essa tutela aos destinatários da informação contida nesse tipo de diagnóstico – os pais – quando essa informação tinha um significado como critério de decisão destes naquela conjuntura temporal, perdendo-o totalmente fora desse enquadramento temporal. Encontramos um exemplo marcante da desvalorização do sentido do paradoxo conceptual da não exis- tência numa decisão de 1980 de um tribunal de recurso da Califórnia, Curlander versus Bio-Science Labora- tories (disponível em: http://law.justia.com/cases/california/court-of-appeal/3d/106/811.html, estando em causa uma ação por wrongful life, não por wrongful birth , na qual uma menor pretendia ser indemnizada por um erro de diagnóstico, no início da respetiva gestação, da doença de Tay-Sachs, uma grave doença degenerativa), afirmando o Tribunal a este respeito: «[…] Não é necessário nem é justo refugiarmo-nos numa meditação especulativa sobre os mistérios da vida. Não necessitamos de nos preocupar com a possibilidade de o demandante poder não ter chegado a existir, não fora a negligência dos demandados [ had defendants not been negligent ]. O facto é que o demandante, afetado de uma grave deficiência, chegou à existência e dispõe de todos os seus direitos. […]». Trata-se, nesta visão das coisas, de sublinhar, enquanto verdadeira essência deste tipo de ações, a circuns- tância de expressarem – de só expressarem –, como dissemos, pretensões de compensação indemnizatória por má-prática médica. A circunstância de assentarem, de alguma forma, numa construção contendo algo de paradoxal, pouco ou nada muda nessa essência reparatória de danos sofridos por pessoas determinadas em resultado do desvalor da conduta de outras pessoas. Aliás, a base de afirmação do paradoxo da não existên- cia – da autocontradição ou contradição performativa nos termos referidos por Claus-Wilhelm Canaris no trecho supra transcrito – é objeto de contestação, afirmando-se – e citamos Paulo Mota Pinto (referindo-se, é certo, às situações de wrongful life ) – que a imputação à afirmação pressuposta no pedido indemnizatório da autodestruição da base em que assenta a formulação desse pedido, “[…] está longe de ser inevitável, pois a existência da criança é um dado real, que evidentemente não é afetado pela formulação do pedido” (“Indemnização em caso de ‘nascimento indevido’ e de ‘vida indevida’…”, cit., p. 935). E acrescenta este Autor, “[c]omo refere Erwin Deutsch, ‘a jurisprudência negou esta pretensão porque nem existe um fun- damento de pretensão delitual, nem a criança se poderia colocar na posição de que seria melhor não ter nascido’, mas ‘ambos os argumentos se rebatem a si próprios: o direito de personalidade em formação atribui um fundamento de pretensão no caso de lesão; a afirmação de que seria melhor não ter nascido é justamente
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