TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 95.º Volume \ 2016
189 acórdão n.º 55/16 dizíamos, podemos caracterizar a situação como correspondendo a uma pretensão indemnizatória dos pais de uma criança nascida com uma deficiência congénita, não atempadamente detetada ou relatada aos mes- mos em função de um erro médico, a serem ressarcidos (eles os pais) pelo dano resultante da privação do conhecimento dessa circunstância, no quadro das respetivas opções reprodutivas, quando esse conhecimento ainda apresentava potencialidade para determinar ou modelar essas mesmas opções. Foi esta a pretensão dos autores que o Supremo Tribunal de Justiça acolheu na decisão recorrida, tratando-se, como dissemos, da fixação de uma indemnização aos pais (relativa a danos próprios des- tes), indemnização cujo facto gerador do dano pretendido reparar é habitualmente referido na litera- tura jurídica através da expressão wrongful birth (nascimento indevido), aqui também utilizada pelo STJ e pelas instâncias que o precederam. Note-se que esta designação foi empregue, paralelamente à de wrongful life , pela primeira vez em 1963, por um Tribunal norte-americano – por contraposição à ideia-conceito de wrongful death (o tipo de indemnização correspondente ao que designamos por dano morte) – numa decisão de um Tribunal de recurso do Estado do Illinois (a decisão Zepeda v. Zepeda, aces- sível no seguinte endereço : http://www.leagle.com/decision/196328141IllApp2d240_1238/ZEPEDA%20 v.%20ZEPEDA ; recusou esta decisão a atribuição da indemnização aí peticionada). Posteriormente, já num contexto próximo do da presente ação, foi a expressão retomada em 1967, por um Tribunal de New Jersey, na decisão Gleitman v. Cosgrove [esta decisão, também recusando a indemnização desse tipo, é acessível no seguinte endereço : http://www.leagle.com/decision/19677149NJ22_160/GLEITMAN%20 v.%20COSGROVE ; sobre o contexto jurisprudencial do aparecimento das expressões wrongful birth e wrongful life e dos correspondentes conceitos, vide Erin Nelson, Law, Policy and Reproductive Autonomy, Oxford, Portland, 2013, pp. 205 e segs., Thomas A. Burns, “ When life is an injury: an economic approach to wrongful life lawsuits ”, Duke Law Journal, February, 2003, 52(4), pp. 812/816 e Athena N. C. Liu, “ Wrongful life: some of the problems ”, in Journal of medical ethics, 1987, 13, 69/70, este texto está dis- ponível no endereço: http://europepmc.org/backend/ptpmcrender.fcgi?accid=PMC1375426&blobtype=pdf ]. Sendo este o objeto central da ação – e sendo ele que foi aqui invocado como principal questão de inconstitucionalidade, referida a uma determinada interpretação dos artigos 483.º, 798.º e 799.º do Código Civil (CC) –, importa ter presente, todavia, que o recurso inicialmente interposto pelos recorrentes para este Tribunal (aqui se remete para a transcrição feita no item 1.7., supra do requerimento de interposição) apre- sentava, igualmente configurada como suscitação prévia no quadro da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), uma incidência temática mais ampla que a correspondente às referências normativas da questão da atribuição de uma indemnização por wrongful birth . De facto, nessa configuração inicial, abrangia o recurso um segundo tema, expresso num outro bloco normativo composto pelos artigos 615.º, n.º 1, alínea d) e 674.º, n.º 3 do Código de Processo Civil (trata-se do Código de Processo Civil atual), estando em causa a forma como o Supremo Tribunal de Justiça alegadamente construíra, na decisão recor- rida, por referência à questão de facto decorrente do julgamento realizado nas instâncias, o acervo fáctico que considerou estabelecido e ao qual aplicou o Direito. Abordaremos desde já, num quadro introdutório de delimitação do objeto do recurso de constituciona- lidade, esta última questão. 2.1. Através do despacho inicial de fls. 875/876 (transcrito no item 1.7.1., supra ) equacionou o ora relator as duas questões de constitucionalidade antes mencionadas, adiantando-se aí – rectius , abrindo-se à discussão das partes nas subsequentes alegações – a possibilidade do não conhecimento pelo Tribunal da questão referida às normas do Código de Processo Civil e enunciando como apta a ser conhecida a questão atinente às normas de direito substantivo sedeadas no Código Civil (correspondendo esta última à questão do wrongful birth ). É com base nesse despacho preliminar, ponderando agora a posição dos recorrentes nas alegações e nas conclusões destas, que fixaremos a exata incidência temática do recurso. A este respeito, importa considerar a circunstância dos recorrentes, em sede de motivação do recurso por via das alegações, aceitando implicitamente a posição que o relator expressou no despacho interlocutório,
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