TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 95.º Volume \ 2016
139 acórdão n.º 28/16 âmbito, não deixaria de representar materialmente denegação de justiça por falta de recursos económicos, que é solução que, a reconhecer-se, atingiria o âmago do direito de acesso ao direito e aos tribunais consa- grado no n.º 1 do artigo 20.º da Constituição. O notário, sendo atualmente um profissional liberal, é simultaneamente um oficial público, indepen- dente e imparcial (artigo 1.º do Estatuto da Ordem dos Notários), o que decorre do conteúdo material das funções que lhe são cometidas, quer enquanto entidade a quem compete conferir autenticidade aos docu- mentos e proceder ao seu arquivamento, quer enquanto entidade a quem também cabe a direção dos proces- sos de inventário e, em regra, a decisão dos incidentes interlocutórios que nele se suscitem, sem prejuízo da garantia do recurso aos tribunais estaduais. Ora, a «incindível natureza pública e privada» da função notarial (artigo 1.º, n.º 2, do Estatuto da Ordem dos Notários), nos vários domínios em que se exerce, constitui traço distintivo que constitucionalmente legi- tima as diferenças de regime que possa haver na forma como o legislador especificamente posiciona o notário, em confronto com os restantes profissionais forenses, no sistema global de acesso ao direito e aos tribunais. Nesta perspetiva, a exigência do prosseguimento dos autos de inventário, na hipótese normativa questio- nada, não só não se mostra «em contradição intrínseca com a conceção global do sistema de acesso ao direito e de apoio judiciário», como constitui condição da sua plena efetivação nos casos, como o presente, em que a tutela jurisdicional é efetivada, em primeira linha, por recurso a outras entidades que não os tribunais estaduais. 5. Defende, ainda, a recorrente, que, «entender-se que o notário está obrigado a prosseguir com a tra- mitação do processo de inventário, (…), sem que lhe seja disponibilizado em tempo útil e legalmente estipu- lado, pelo Estado, o pecúlio financeiro para tal (pressupondo uma suficiência tendencialmente ilimitada de meios financeiros do cidadão notário)», impondo «a continuação dessa tramitação com meios disponibiliza- dos pelo próprio titular do processo e da sua propriedade», viola, além do mais, o direito ao trabalho (artigo 58.º da Constituição), o direito à retribuição do trabalho [artigo 59.º, n.º 1, alínea a) , da CRP] e o princípio da segurança no emprego (artigo 53.º da Constituição). «Ou seja – conclui a recorrente –, perante dois cidadãos, constitucionalmente iguais em direitos e obrigações, o Estado a um dá o direito ao apoio judiciário gratuito e ao outro, o notário, impõe que pague o custo desse acesso, o que competia exclusivamente a ele, Estado, pagar.» Sucede que, mais uma vez, a recorrente parece partir do pressuposto, que não é o da lei nem o da inter- pretação sindicada, de que a exigência do prosseguimento dos autos de inventário, nesse particular contexto transitório – em que ainda não está em vigor o fundo a que alude o disposto no n.º 2 do artigo 26.º da Portaria n.º 278/2013 – implica a definitiva e completa desoneração do Estado, nessa fase transitória, do dever patrimonial de suportar, em substituição da pessoa economicamente carenciada, os custos inerentes à tramitação do processo de inventário. Porém, o Tribunal recorrido apenas considerou processualmente ilegítima a invocação, como causa de suspensão dos autos de inventário, do não adiantamento prévio, pelo Estado, dos meios destinados a supor- tar os respetivos custos, o que se não ajusta às razões de queixa constitucional que a recorrente invoca em juízo, quando apela ao direito à retribuição no trabalho. Ainda que fosse sustentável – e não é – a ampliação subjetiva das normas constitucionais que consagram os direitos fundamentais do trabalhador, de modo a nelas integrar como sujeitos ativos, não apenas o tra- balhador por conta de outrem, com o sentido histórico-normativo que lhe é atribuído, assente na subordi- nação jurídica, mas também os profissionais liberais (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira , Constituição da República Anotada , volume I, 4.ª edição revista, Coimbra Editora, 2007, p. 706), a verdade é que não se trata aqui de negar aos notários o direito à compensação devida pelos serviços prestados no âmbito do processo de inventário; o que se lhes nega, num sistema que só excecional e subsidiariamente admite o recurso a meios de autotutela de direitos, é o poder de suspender unilateralmente o prosseguimento de um processo instaurado
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