TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
93 acórdão n.º 403/15 Assim – e formulamos aqui, tão-somente, um ponto de partida argumentativo –, parece a letra do pre- ceito (o artigo 34.º, n.º 4 da CRP), à superfície, ser clara no sentido de restringir a possibilidade de acesso aos dados de comunicações – incluindo, pois, como se deixou afirmado, os dados de tráfego – ao âmbito do processo criminal, tout court . No entanto, tendo presente que a letra da lei – de qualquer lei, obviamente também a lei constitucional, que é, paradigmaticamente, uma lei interpretativamente aberta – é o primeiro passo na complexa tarefa de a interpretar, mas não simultaneamente o derradeiro passo nesse sentido (artigo 9.º, n.º 1 do Código Civil), poderá então o seu sentido literal sofrer ajustamentos reclamados por outras considerações (sistemáticas, desde logo, sem perder de vista a concreta realidade social que reclama a aplicação da norma). Recorrendo às palavras de Karl Engisch ( Introdução ao Pensamento Jurídico , tradução de J. Batista Machado, 10.ª edição, Lisboa, 2008, pp. 336 e segs.), diríamos: “[q]ue se passa aqui? Se se considera claro o ‘teor verbal’ como um limite absoluto da interpretação, já não se trata aqui certamente de interpretação – nem sequer de uma inter- pretação frouxamente vinculada, enquanto se entenda que esta pressupõe um teor verbal ambíguo (plurissig- nificativo) e se afasta do sentido vocabular mais imediato e aparente, na direção de um mais distante. Mas as coisas já se apresentam de outra forma se entendermos os conceitos de interpretação ‘restritiva’ e ‘extensiva’ no sentido de que, através destes modos de interpretação, se faz vingar a genuína vontade ou a verdadeira valoração de interesses do legislador. Sendo assim, então talvez pudéssemos falar […] de uma interpretação teleológica restritiva […]”. Trata-se de uma “[…] espécie de ‘retificação da lei’, que guarda fidelidade à posi- ção tomada pelo legislador, ao seu querer, ao escopo que persegue, e apenas quebra os limites do sentido literal […]”, distinguindo-se da “[…] insurreição contra o legislador por amor da transcendente ideia de Direito” (Autor e ob. cit. , p. 338). No fundo, trata-se de afirmar uma “obediência pensante”, na célebre e feliz expressão de Heck. Temos, assim, de questionar se, atento o quadro já traçado de evolução normativa e de contexto histórico do artigo 34.º da CRP, ao lado do qual colocaremos a sede constitucional conferida à função de produção de informações (aos Serviços de Informações), a fidelidade ao sentido querido pelo legislador constitucional, atualizado por referência à realidade social de 2015, reclama ou não um ajustamento – uma redução – da proibição literal contida no n.º 4 daquele artigo. No caso, precisamente, uma redução teleológica, procu- rando responder a uma lacuna oculta: “[qualificamos] de lacuna ‘oculta’ o caso em que uma regra legal, con- tra o seu sentido literal, mas de acordo com a teleologia imanente à lei, precisa de uma restrição que não está contida no texto legal. A integração de uma tal lacuna efetua-se acrescentando a restrição que é requerida em conformidade com o sentido. Visto que com isso a regra contida na lei, concebida demasiado amplamente segundo o seu sentido literal, se reconduz e é reduzida ao âmbito de aplicação que lhe corresponde segundo o fim da regulação ou a conexão de sentido da lei, falamos de uma ‘redução teleológica’” (Karl Larenz, Meto- dologia da Ciência do Direito, tradução portuguesa da 6.ª edição alemã por José Lamego, 5.ª edição, Lisboa, 2009, pp. 555/556), sendo que “[…] a analogia, a resolução com base num princípio achado pela via da generalização de uma regra e a redução teleológica representam uma correção do, em parte demasiado estrito, em parte demasiado amplo, teor literal da lei, conforme à ratio legis e à teleologia própria da lei; representam, por conseguinte, um ‘desenvolvimento do Direito imanente à lei’. De vez em quando, uma tal correção do teor literal da lei ocorre ainda de outro modo. Os casos em que o teor literal demasiado estrito é ampliado, sem que por isso se trate de uma analogia, podem denominar-se […] de casos de ‘extensão teleológica’. A seu lado hão de colocar-se aqueles casos em que o teor literal, em si contraditório, de uma disposição é retificado pela jurisprudência de acordo com o seu escopo ” (Autor e ob. cit. , p. 564). A resposta à questão em análise não prescinde de algumas observações. 10.1. A primeira prende-se com o que poderíamos chamar de geografia sistemática dos Serviços dedica- dos à função de produção de informações e do processo criminal. Tratam-se de dois sistemas – de duas áreas da atividade do Estado – que, face ao que vai dito supra não podem, com propriedade, dizer-se enraizados
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