TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
82 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL O que aqui se pretende sublinhar, sem menosprezar o significado do elemento evolutivo que a questão dos dados de tráfego assumiu posteriormente, é, tão-somente, a circunstância do n.º 4 do artigo 34.º da CRP não se ter formado num quadro em que a questão do acesso aos dados circunstanciais da comunicação se colocasse exatamente com o mesmo sentido do próprio acesso ao conteúdo da comunicação, e já então a questão do acesso das autoridades aos dados de tráfego havia sido equacionada, por exemplo, na jurisprudên- cia do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, no Acórdão Malone v. Reino Unido, de 1984, a respeito do trecho do artigo 8.º, n.º 2 da Convenção que exige que a ingerência das autoridades esteja “prevista na lei” (foi esse o exato sentido da decisão Malone, cfr. os respetivos pontos 66 a 68, e, posteriormente, em 1990, da decisão Huvig e Kruslin c. França, cfr. Louis-Edmond Pettiti, Emmanuel Decaux, Pierre-Henri Imbert, La Convention Européenne des Droits de L’Homme. Commentaire article par article, 2.ª edição, Paris, 1999, pp. 314/315). Ou seja, o que aqui se pretende afirmar é, tão-só, que o texto constitucional, não se tendo cristalizado numa fase (inicial) de “indiferença valorativa” pelo que hoje chamamos dados de tráfego, não assimilou logo para estes um grau de proteção absolutamente idêntico ao dos dados de conteúdo. Adiante voltaremos a esta questão, a respeito da apreciação de precedentes na jurisprudência deste Tribunal que entendemos dever convocar à discussão da viabilidade constitucional do artigo 78.º, n.º 2, do Decreto n.º 426/XII. Por ora, interessa-nos – e isso é claro no trecho final do artigo 34.º, n.º 4, da CRP – que a exceção à proibição de ingerência das autoridades públicas nas telecomunicações é estabelecida sob reserva de lei (“salvos os casos previstos na lei”) e é referida a “matéria de processo criminal”. 3. Pelo preenchimento do primeiro destes elementos, a reserva de lei, vale aqui a clareza da opção do legislador originário e exclusivo nesta matéria, a Assembleia da República [cfr. o artigo 164.º, alínea q), da CRP], envolvendo o Diploma aprovado uma manifestação inequívoca e particularmente expressiva – facto que o requerente não deixou de sublinhar no artigo 4.º do pedido de fiscalização – do propósito de conceder aos Serviços de Informações integrados no SIRP, mediante condições bem definidas, que incluem um meca- nismo dedicado de controlo prévio condicionante, de acesso aos dados de tráfego, de localização ou outros dados conexos das comunicações, necessários para identificar o assinante ou utilizador ou para encontrar e identificar a fonte, o destino, a data, a hora, a duração e o tipo de comunicação, bem como para identificar o equipamento de telecomunicações ou a sua localização. Interessa sublinhar esta incidência, além de tudo o mais, enquanto preenchimento expressivo de uma condição identificada, no quadro dos Estados de direito, relativamente a leis que envolvam elementos restriti- vos de direitos fundamentais, e especificamente quanto à consideração dos meios de atuação dos Serviços de Informações. Referimo-nos ao chamado “princípio da afirmação clara” pelo legislador ( clear statemant princi- ple ), expressão cunhada por Cass Sunstein, referindo-se, como caso paradigmático, a uma decisão do Supremo Tribunal de Israel, de 6 de setembro de 1999 [ Association for Civil Rights in Israel v. The General Security Service (1999). Supreme Court of Israel: Judgement Concerning the Legality of the General Security Service’s Interrogation Methods, 38, I.L.M. 1471 (1999)], afirmando a absoluta ilegitimidade do estabelecimento, pelo próprio serviço de informações, de meios ou métodos de atuação, sem um expresso mandato legal, maxime , na ausência de uma clara e inequívoca decisão a esse respeito por parte do legislador (do Parlamento), excluindo que qualquer opção neste domínio seja definida, “com base numa construção legal vaga e ambígua”, criada ad hoc no seio do próprio serviço de informações, arvorando-se este uma faculdade de fixar métodos de atuação e de avançar num qualquer vazio legal. Comentando este pronunciamento do Supremo Tribunal de Israel, refere Cass Sunstein: «[…] Podemos tomar esta decisão judicial enquanto afirmação de um princípio geral, segundo o qual o poder legislativo deve autorizar, explicitamente, medidas controversas que apresentem um potencial restritivo de direi- tos fundamentais [ explicitly authorize disputed infringments on civil liberty ]. A razão para o estabelecimento desta salvaguarda assume um sentido garantístico, contra o estabelecimento de restrições inadequadamente ponderadas nas suas consequências, reforçando a salvaguarda política consistente na existência de um acordo formado no seio
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