TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

79 acórdão n.º 403/15 das normas que enformem o sistema de organização dos serviços da informações, ou da definição das suas competências, não decorrem – pela natureza mesma desses serviços – uma ameaça lesiva da liberdade indivi- dual que seja, pela sua intensidade, equiparável àquela que emerge, inevitavelmente, da aplicação das normas de processo criminal. Assim, e havendo afinidade valorativa ou teleológica entre as finalidades prosseguidas pelos serviços de informação e as normas penais incriminadoras – e decorrendo da aplicação das primeiras uma potencialidade de agressão da liberdade individual em todo o caso menor do que aquela que ocorre com a mera adjetivação das segundas – poder-se-ia concluir, se tivesse sido outra a posição conceptual e metódica de que se partisse, que a autorização constitucional para restringir a inviolabilidade das telecomunicações em «matérias de processo criminal» se estenderia, por maioria de razão, aos Serviços de Informações da Repú- blica. Impedir a extensão por razões meramente textuais, ultrapassáveis pelo acrescento de algumas palavras à parte final do n.º 4 do artigo 34.º feito em processo de revisão constitucional, não me parece convincente: creio que os caminhos de uma hermenêutica constitucional adequada não passam pelo método estrito de uma «textualidade» como esta, que ergue em objeto de «interpretação» preceitos [e incisos desses preceitos] isoladamente tomados, sem consideração pelo lugar que ocupam no sistema axiológico da Constituição. Impedir a extensão por razões valorativas – que, por isso mesmo, permaneceriam para além de uma decisão parlamentar tomada pela maioria qualificada a que se refere o n.º 1 do artigo 286.º da CRP – implicaria demonstrar que só a função jurisdicional do Estado estaria apta para resolver em concreto o conflito entre a liberdade e a segurança que a necessidade de interceção de dados de tráfego das telecomunicações implica. Ora, a meu ver, essa demonstração não pode ser feita. Não vejo como possa retirar-se do sistema constitucio- nal, no seu conjunto tomado, a proibição da existência de meios administrativos de defesa da Constituição, destinados a garantir a convivência adequada entre liberdade individual e segurança coletiva [e também individual], e por isso mesmo, capazes de ser abrangidos pela autorização constitucional constante da parte final do n.º 4 do artigo 34.º da CRP. 5. Dito isto, não restam dúvidas que a interceção, por parte das autoridades públicas, dos dados de trá- fego das telecomunicações, constitui por si mesma uma restrição grave do direito fundamental que o artigo 34.º consagra, com repercussões várias na limitação de outras facetas da liberdade individual, constitucional- mente consagradas. Como aliás o revela a jurisprudência supranacional que o Acórdão refere, a simples obri- gatoriedade de conservação, por parte dos operadores privados de telecomunicações, desses mesmos dados durante um certo período de tempo – obrigatoriedade essa que se justifica para que as autoridades públicas àqueles possam aceder – já prefigura de per se uma lesão intensa na privacidade, e logo, na liberdade indivi- dual, que pode ser desde logo agredida por terceiros, ou por entidades privadas. Estando por isso o Estado obrigado a impedir essa agressão por parte de terceiros – através da emissão de normas suficientemente pro- tetoras da liberdade individual – mal se compreenderia que, no que toca ao acesso dos seus próprios órgãos e agentes a esses mesmos dados, se não munisse de um sistema de regulação tão ou mais exigente do que aquele que é aplicado nas relações entre privados. A regulação, por lei, dos Serviços de Informações da República, a incluir no sistema de competências desses mesmos serviços a possibilidade de interceção dos dados de tráfego de telecomunicações, teria assim que, pelo menos, tornar tão claras e precisas quanto possível as circunstâncias em que o acesso a esses dados seria legítimo, de modo a não deixar à administração a liberdade de ponderar – sem quaisquer limites legais – da necessidade da interceção. Esta é uma exigência que decorre, desde logo da primeira frase do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, uma vez ser a reserva de lei, que aí se consagra, não apenas formal mas também material. A intervenção agressiva da administração na esfera da liberdade dos privados não pode deixar de ser balizada por certos critérios a definir por lei, de modo a que seja a lei a distinguir, com um mínimo de precisão, a intervenção administrativa legítima da ilegítima. Depois, e ainda nos termos do n.º 2 do artigo 18.º da CRP, tal intervenção não poderia deixar de ser proporcionada, limitando-se ao necessário para «salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos». Por isso mesmo, a lei reguladora do sistema dos Ser- viços de Informações da República, a incluir na competência dos seus órgãos ou agentes a possibilidade de

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