TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
74 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL A esse propósito, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já afirmou que um processo de acesso a dados, porque não sujeito ao escrutínio dos indivíduos visados, tem de ser compensado por uma lei suficien- temente tuteladora dos direitos fundamentais (acórdão de 6 de junho de 2006, Segerstedt-Wiberg e outros c. Suécia , queixa n.º 62332/2000); que essa lei deve empregar termos suficientemente claros para possibilitar a todos os cidadãos terem conhecimento das circunstâncias e dos requisitos que permitem ao poder público fazer uso de uma medida secreta que lesa o direito à vida privada pessoal e familiar e à correspondência (acór- dão de 2 de agosto de 1984, Malone c. Reino Unido, queixa n.º 8691/79); que seria contrária às exigências do artigo 8.º, n.º 2, da CEDH se a ingerência nas telecomunicações fosse conferida aos poderes públicos através de um poder amplo e discricionário, e que são necessárias regras claras e detalhadas, especialmente devido ao facto de a tecnologia disponível se tornar cada vez mais sofisticada, a fim de garantir uma prote- ção adequada contra ingerências arbitrárias (acórdão de 16 de fevereiro de 2000, Amann c. Suíça 95, queixa n.º 27798/95); e nos casos Valenzuela c. Espanha (acórdão de 30 de julho de 1998, queixa n.º 27671/95) e Prado Bugallo c. Espanha (acórdão de 18 de fevereiro de 2003, queixa n.º 58496/00), chegou à mesma conclusão, afirmando que a lei que permitia a ingerência nas comunicações não era suficientemente clara e precisa, não mencionando a natureza das infrações que podem dar lugar às mesmas, a fixação de um limite de duração da medida, as condições de acesso aos dados e a eliminação dos mesmos. E a jurisprudência constitucional estrangeira orienta-se no mesmo sentido. O Tribunal Constitucional espanhol afirmou já, por diversas vezes, que a ingerência nas comunicações telefónicas só pode considerar- -se constitucionalmente legítima quando esteja prevista na lei com suficiente grau de precisão (Decisão n.º 49/99, de 5 de abril, Decisão n.º 184/2003, de 23 de outubro); e o Tribunal Constitucional alemão, em relação a uma lei que não regulava como deveriam os dados ser guardados nem oferecia garantia de uma efetiva supervisão, decidiu que, no âmbito da realização de uma base de dados partilhada entre o serviço de inteligência e vários serviços de segurança, com o objetivo de combater o terrorismo, a partilha ou transfe- rência de informação estava sujeita a requisitos constitucionais muito exigentes, dos quais se destacava a sua detalhada configuração legal (Decisão de 24 de abril de 2013, 1.º Senado). Desta jurisprudência decorrem, pois, várias exigências para uma norma que, como a presente, permita o acesso a dados de tráfego das comunicações de indivíduos sem o seu consentimento ou conhecimento. Em primeiro lugar, a lei deve empregar termos suficientemente claros para possibilitar a todos os cidadãos terem conhecimento das circunstâncias e dos requisitos que permitem ao poder público aceder aos dados em causa, sendo que os requisitos para o efeito devem ser claramente determinados; deve ainda fazer menção, com precisão, dos casos específicos em que o acesso deve ter lugar, prever a fixação de um limite de duração da medida, e das regras e prazos para eliminação dos dados de tráfego. Só assim se poderá falar de uma inge- rência determinável e que garanta segurança jurídica aos interessados. 22. Mas, se assim é, há que reconhecer que, para além da impossibilidade de compatibilização com a norma do n.º 4 do artigo 34.º da CRP, a norma do n.º 2 do artigo 78.º do Decreto n.º 426/XII não contém densidade suficiente para, num domínio de lei restritiva, possibilitar a fiscalização da legalidade e a defesa dos direitos e interesses dos cidadãos. Com efeito, a norma não satisfaz suficientemente, como contrapartida do acesso aos dados de tráfego, as exigências de determinabilidade que são garantidas em matéria de processo criminal, devolvendo para a esfera administrativa ponderações que deveriam constar da lei. Desde logo, e quanto aos pressupostos da concessão da autorização de acesso aos dados, a lei estabelece que o acesso aos dados de tráfego de comunicações tem lugar nos casos previstos na alínea c) do n.º 2 do artigo 4.º, que respeitam à prevenção de sabotagem, espionagem, terrorismo e sua proliferação, a crimina- lidade altamente organizada de natureza transnacional e a prática de atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito democrático constitucionalmente estabelecido. Mas a parte final da norma não oferece suficiente segurança jurídica aos potenciais lesados, já que resulta indeterminado o que podem constituir «atos que, pela sua natureza, possam alterar ou destruir o Estado de direito democrático constitucionalmente estabelecido». Assim, não se pode considerar que a lei tenha determinado de forma
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