TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

66 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal». Em relação às autoridades públicas, este preceito constitucional exprime duas normas contrapostas no seu sentido deôntico: uma norma proibitiva de toda a ingerência na correspondência, telecomunicações e demais meios de comunicação; e uma norma permissiva da ingerência nos casos previstos na lei emmatéria de processo penal. Entre as duas normas há uma relação de excecionalidade, em que a norma proibitiva aparece como geral relativamente à norma permissiva, que exceciona. Com efeito, a norma permissiva autoriza o legislador a criar normas para um setor restrito de casos com uma configuração particular – «em matéria de processo penal» – que consagram uma disciplina oposta à constitucionalmente estabelecida como regime-regra. O sacrifício do direito à inviolabilidade das comunicações privadas a razões imperiosas de investiga- ção criminal consubstancia uma restrição ao conteúdo constitucional daquele direito fundamental, com o âmbito de proteção acima delimitado. O direito à inviolabilidade das comunicações não é pois um direito absoluto, visto que a Constituição autoriza uma intervenção normativa do legislador, para salvaguarda de outros valores constitucionais, nomeadamente de bens jurídicos dotados de dignidade penal (de bens jurí- dico-penais), ao serviço dos quais se encontra o processo criminal. De facto, o n.º 4 do artigo 34.º da CRP admite restrições a estabelecer por lei com fundamento em exigências de processo criminal relativamente à inviolabilidade de correspondência, telecomunicações e outros meios de comunicação. Trata-se, pois, de um preceito constitucional que contempla uma previsão constitucional expressa da restrição de um direito fundamental (sigilo das comunicações), preenchendo o pressuposto material da emanação de leis restritivas a que diretamente se refere ao artigo 18.º, n.º 2, primeira parte, da Lei Fundamental («a lei só pode restringir direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente previstos na Constituição»). Ora, como refere Gomes Canotilho, a autorização de restrição expressa de um direito fundamental «tem como objetivo obrigar o legislador a procurar sempre nas normas constitucionais o fundamento concreto para o exercício da sua competência de restrição de direitos, liberdades e garantias», de modo a criar segu- rança jurídica nos cidadãos, que poderão contar com a inexistência de medidas restritivas de direitos fora dos casos expressamente considerados pelas normas constitucionais como sujeitos a reserva de lei restritiva» (cfr. Direito Constitucional e Teoria da Constituição , 5.ª edição, p. 448). Sendo este o sentido das restrições estabe- lecidas por lei, mediante autorização expressa da constituição, a intervenção normativa abstrata do legislador ordinário só pode ocorrer nos termos autorizados pela norma constitucional e nos casos nela previstos. Ora, o tipo de restrições ao direito à inviolabilidade das comunicações que é admitido pelo n.º 4 do artigo 34.º da CRP é muito mais exigente do que as restrições toleradas por outros direitos fundamentais em que se protegem os mesmos bens jurídicos (dignidade da pessoa, desenvolvimento da personalidade, garantia da privacidade, autodeterminação comunicativa). Contrariamente ao que se verifica em alguns desses direitos, em que, através da expressão “nos termos da lei”, se atribui uma competência genérica de regulação que pode ser interpretada como incluindo poderes de restrição, a norma permissiva do n.º 4 do artigo 34.º autoriza a restrição do direito à inviolabilidade das comunicações apenas em determinado domínio normativo: “em matéria de processo criminal”. Através deste segmento normativo, a autorização constitucional expressa para a restrição do direito à inviolabilidade das comunicações é completada com a discriminação dos fins e interesses a prosseguir com a lei restritiva ou com o critério que deve balizar a intervenção do legislador ordinário. Este é, pois, um caso – a par do igualmente estabelecido no artigo 27.º, n.º 3, em que se estabelecem as condições da privação da liberdade –, em que é a própria Constituição que prevê diretamente uma deter- minada restrição, remetendo para a lei a sua concretização, mas tomando sempre como referencial o pro- cesso criminal. Noutras situações, a Constituição limita-se a admitir restrições não especificadas, como por exemplo nos artigos 35.º, n.º 4 (proibição de acesso a dados pessoais, salvo nos casos previstos na lei), 47.º, n.º 1 (liberdade de escolha de profissão salvas as restrições legais), 49.º, n.º 1 (direito de sufrágio ressalvadas as incapacidades previstas na lei geral), e 270.º (restrições estabelecidas por lei ao exercício de direitos pelos militares e agentes militarizados).

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