TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
60 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL que consagra a proteção contra as intervenções arbitrárias e desproporcionadas do poder público na esfera da atividade privada de uma pessoa singular ou coletiva» (acórdão de 22 de outubro de 2002, Roquette Frèrres, processo n.º C-94/00). Atualmente, o artigo 7.º da Carta dos Direitos Fundamentais consagra o respeito pela vida privada e familiar, dispondo, inspirado nas demais normas internacionais, que «todas as pessoas têm direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu domicílio e pelas suas comunicações». Este direito vale, nos termos do artigo 52.º, n.º 3, da Carta, com o mesmo sentido que é conferido ao artigo 8.º da CEDH. Por seu turno, o artigo 8.º da Carta contém uma norma específica relativa à proteção de dados pessoais, proteção essa que recebe, assim, uma consagração expressa e autónoma face ao artigo 7.º A norma em causa estabelece que «todas as pessoas têm direito à proteção dos dados de caráter pessoal que lhes digam respeito». O Tribunal de Justiça da União referiu que este direito está «indissociavelmente relacionado com o direito ao respeito pela vida privada» (acórdão de 9 de novembro de 2010, Volkerund Markus Schecke , pro- cesso n.º C-92/09 e C-93/09). Por outro lado, esclareceu que a proteção de dados de tráfego das comunica- ções se encontra abrangida pelo âmbito de proteção deste direito fundamental (assim, o acórdão de 8 de abril de 2014, Digital Rights Ireland Ltd. , processos n. os C-293/12 e C-594/12, que, anulou a Diretiva 2004/26/ CE, por violação dos artigos 7.º e 8.º da Carta dos Direitos Fundamentais). 12. O acesso aos dados das comunicações efetivamente realizadas ou tentadas põe em causa direitos fundamentais das pessoas envolvidas no ato comunicacional. E não é apenas a invasão ou intromissão no conteúdo informacional veiculado pelos meios de transmissão (dados de conteúdo), que os afetam, mas também as circunstâncias em que a comunicação foi realizada (dados de tráfego). Com efeito, mesmo que não haja acesso ao conteúdo, a interconexão entre dados de tráfego pode fornecer um perfil complexo e completo da pessoa em questão – com quem mais conversa, que lugares fre- quenta, quais os seus horários, etc. A verdade é que, como refere Costa Andrade, «no seu conjunto, os dados segregados pela comunicação e pelo sistema de telecomunicações se revelam, muitas vezes, mais significativos que o próprio conteúdo da comunicação em si. O que, de resto, bem espelha o interesse com que, reconhe- cidamente, a investigação criminal procura maximizar a recolha de dados ou circunstâncias da comunicação, também referenciados como dados de tráfego» (cfr. “Bruscamente no verão passado – A Reforma do Código de Processo Penal”, in Revista de Legislação e de Jurisprudência, Ano 137.º, julho-agosto 2008, p. 338). Isto mostra claramente que a manipulação ilegal ou ilegítima do conteúdo e das circunstâncias da comu- nicação pode violar a privacidade dos interlocutores intervenientes, atentando ou pondo em risco esferas nucleares das pessoas, das suas vidas, ou dimensões do seu modo de ser e estar. De sorte que a possibilidade de se aceder aos dados das comunicações colide com um conjunto de valores associados à vida privada que fundamentam e legitimam a proteção jurídico-constitucional. Desde logo, a liberdade de ação, enquanto vertente do direito ao desenvolvimento da personalidade, de acordo com a qual, na interação com os outros, a condução da vida de cada um é autoconformada pela sua atuação, o que pressupõe, como referem Gomes Canotilho e Vital Moreira «a exigência de proibição de ingerências dos poderes públicos (…) como, por exemplo, (…) “o direito a não ser espiado”» ( Constituição da República Portuguesa Anotada, 2.ª edição, Vol. I, p. 465). Depois, com a esfera íntima e a esfera privada da pessoa humana, seja enquanto pretensão de isolamento, tranquilidade e exclusão do acesso dos outros a si próprio (direito à solidão), seja, enquanto impedimento à ingerência dos outros (direito ao anonimato), seja ainda, mais modernamente, e perante a insuficiência protetora das referidas dimensões, enquanto controlo das informações que lhe dizem respeito e de subtração ao conhecimento dos outros os factos reveladores do modo de ser do sujeito na condução da sua vida privada (autodeterminação informacional). Como refere Joaquim Sousa Ribeiro, esta última dimensão, hoje a de maior relevo, «impede que o “eu” seja objeto de apropriação pelos outros, como matéria de comunicação na esfera pública. Nela conjuga-se o direito ao segredo (à intromissão dos outros na esfera privada, com tomada de conhecimento de aspetos a ela referentes) e um direito à reserva (proibição de revelação)» – cfr. “A Tutela
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