TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

524 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL origem injustificada por parte de pessoas condenadas pela prática de certos crimes é uma conduta suscetível de desencadear a aplicação de uma reação penal, sendo o confisco do valor injustificado a reação aplicável; a reação incide apenas sobre o aspeto patrimonial, prescindindo-se da aplicação de uma pena privativa da liberdade. Tendo presente este debate doutrinal, importa realçar que o estabelecimento da presunção legal cuja constitucionalidade é sindicada nos presentes autos não tem em vista a imputação ao arguido da prática de qualquer crime e o consequente sancionamento, mas sim privá-lo de um património, por se ter concluído que o mesmo foi adquirido ilicitamente, assim se restaurando a ordem patrimonial segundo o direito, o que situa a questão em plano diverso do que foi objeto de análise nos Acórdãos n. os 179/12 e 377/15 deste Tri- bunal (acessíveis em www.tribunalconstitucional.pt ) . É certo que a aplicação da medida de perda a favor do Estado, a par deste objetivo, tem uma finalidade de prevenção criminal, evitando que se crie a ideia que o crime compensa, assim como a sua aplicação tem como pressuposto necessário a condenação por um dos crimes do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro. Contudo, conforme já salientou este Tribunal no referido Acórdão n.º 101/15, só com esta condenação pela prática de um dos aludidos crimes é que opera a presunção prevista no artigo 7.º, n.º 1, da mesma Lei, sendo que, no incidente de liquidação, a que se refere o artigo 8.º desta Lei, já não está em causa o apuramento de qualquer responsabilidade penal do arguido, mas tão só a determinação de uma eventual incongruência entre o valor do património do arguido e os seus rendimentos de proveniência lícita, incongruência essa que, uma vez demonstrada de acordo com determinados pressupostos, tem como consequência ser declarado perdido a favor do Estado o valor do património do arguido que se apure ser excessivo em relação aos aludidos rendimentos, caso o arguido não ilida aquela presunção de causalidade. A imputação de um crime de catálogo funciona aqui apenas como pressuposto indiciador que poderão ter-se verificado ganhos patrimoniais de origem ilícita, o que justifica, na ótica do legislador, que, no mesmo processo em que se apure a prática desse crime e, eventualmente se conclua pela respetiva condenação, se averigue a existência desses ganhos, em procedimento enxertado no processo penal, de modo a poder deter- minar-se a sua perda (sobre as vantagens e desvantagens deste procedimento ocorrer enxertado no processo penal onde se apura a prática do crime que é pressuposto da aplicação da medida de perda de bens, vide Pedro Caeiro, ob. cit, pp. 311-313, Jorge Godinho, p. 1360, e Damião da Cunha, pp. 159-160). Embora enxertado naquele processo penal, o que está em causa neste procedimento, repete-se, não é já apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens daí decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, nem num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constatação de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção e consolidação dos ganhos ilegítimos. Em suma, a presunção de proveniência ilícita de determinados bens e a sua eventual perda em favor do Estado não é uma reação pelo facto de o arguido ter cometido um qualquer ato criminoso. Trata-se, antes, de uma medida associada à verificação de uma situação patrimonial incongruente, cuja origem lícita não foi determinada, e em que a condenação pela prática de um dos crimes previstos no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, tem apenas o efeito de servir de pressuposto desencadeador da averiguação de uma aquisição ilícita de bens. Tendo em conta o aqui exposto, nesse procedimento enxertado no processo penal não operam as nor- mas constitucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido, invocadas pelo recorrente. Já no que respeita ao procedimento criminal pela prática dos factos integradores de algum dos crimes referidos no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, o arguido beneficia de todas as garantias de defesa em processo penal, não havendo qualquer alteração às regras da prova ou qualquer outra especificidade resul- tante do regime de perda de bens previsto na aludida Lei. Significa isto que, no caso de haver condenação pela prática de tal crime, embora a presunção de inocência tenha sido tida em atenção no respetivo proce- dimento criminal que manteve a sua estrutura acusatória, a mesma veio a ser afastada pela prova produzida

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