TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
512 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL 4. Ao arguido cabe ilidir a presunção de que esse património não tem origem ilícita, criando a inversão do ónus da prova. 5. Ora, a questão do ónus da prova e da sua repartição é algo aparentemente estranho ao processo penal. O processo penal não está, como no processo civil, na disponibilidade das partes, não é um processo de partes onde vigora o dispositivo, contradição e busca pela verdade formal. 6. Não é, portanto, compreensível que no âmbito processual penal, a não prova de um determinado facto tenha como consequência imediata a prova do facto contrário. 7. O legislador optou por uma solução de confisco, que se funda numa presunção de proveniência do patrimó- nio incongruente, sendo esta, claramente, violadora dos direitos fundamentais dos arguidos, maxime do direito ao silêncio e do in dubio pro reo . 8. Mais: em processo penal, ou se produz prova convincente sobre a realidade de um facto ou a dúvida sobre tal realidade funciona em favor do arguido, o que não sucede nestes casos. 9. Como tal, ao estabelecer-se tal presunção, o direito à não autoincriminação resulta altamente comprimido, visto o arguido, quando confrontado com a liquidação, ter necessariamente que proferir declarações, as quais, pese embora de índole patrimonial, sempre lhe poderão ser desfavoráveis no contexto da questão principal. 10. De facto, o direito ao silêncio, um dos corolários mais importantes do princípio nemo tenetur consagrado implicitamente na Constituição da República Portuguesa, resulta amplamente comprimido, visto o arguido correr o risco de ser forçado a proferir declarações, as quais lhe poderão ser desfavoráveis no encadeamento da questão principal, para fugir ao confisco e ilidir a presunção prevista no n.º 1, do artigo 7.º do diploma em causa. 11. O fundamento constitucional do direito ao silêncio reside na estrutura acusatória do processo penal e nas garantias de defesa do arguido. Parece-nos, por isso, que a imposição ao arguido do dever de carrear prova colide com o direito ao silêncio, enquanto direito que integra as garantias de defesa do arguido constitucionalmente pre- vistas, maxime no artigo 32.º, n. os 1 e 2 da Lei Fundamental. 12. Não nos parece coadunável com a estrutura acusatória do nosso processo penal que sobre o arguido impenda um ónus de prova tão excessivo, recaindo sobre ele a prova negativa, facilitando-se, assim, uma tarefa que incumbe tão-só ao órgão acusador. 13. É consabido que a génese do direito ao silêncio não assenta num intuito de beneficiar o arguido, antes decorrendo do aludido princípio do acusatório, que impõe à acusação o dever de provar os factos que lhe são impu- tados, facultando ao arguido um comportamento que, em última análise, poderá obstar a que se autoincrimine. 14. Como tal, a introdução de uma presunção juris tantum colide frontalmente com o direito ao silêncio e com o princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, visto que o seu silêncio ou a sua inação se traduzirá na verificação da presunção, prejudicando-o e “forçando-o” a prestar declarações. 15. É, assim, de concluir-se pela inconstitucionalidade dos artigos 7.º, 8.º e 9.º da Lei 5/2002, de 11 de janeiro, já que tal regime, ao inverter o ónus da prova em processo penal quanto à proveniência do património do arguido, viola claramente os princípios constantes dos artigos 18.º e 32.º da Constituição da República Portuguesa. Nestes termos e nos melhores doutamente suprido, requer-se, muito respeitosamente, que V.ª Ex.ª se digne julgar inconstitucional por violação das garantias de processo penal consagradas nos artigos 18.º e 32.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, a interpretação que se extraia dos artigos 7.º a 9.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, no sentido de estabelecer uma presunção que implica a consignação da inversão do ónus da prova ou da presunção de inocência quanto à proveniência do património do arguido, devendo, em consequência, admitir o recurso interposto pelo recorrente, só assim se fazendo justiça!». O Ministério Público apresentou contra-alegações com as seguintes conclusões: «1. A norma do artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, enquanto estabelece que em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito, não viola os artigos 18.º e 32.º, n. os 1 e 2 da Constituição, não sendo, por isso, inconstitucional.
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