TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

42 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL De modo que, quem durante o exercício de funções públicas ou por causa desse exercício «adquirir, possuir ou detiver património» que não tem justificação nos rendimentos e bens conhecidos e possuídos legitimamente, cria no público a suspeita de aproveitamento do cargo para obtenção de vantagens indevidas; e ausência de justificação desse património faz presumir a proveniência ilícita, com a consequente afetação da confiança da comunidade nas instituições do Estado. Simplesmente, ao medir-se o enriquecimento injustificado pelos rendimentos e bens «declarados ou que devam ser declarados», a conduta a incriminar acaba por se distanciar do bem jurídico objeto de tutela. Com efeito, se o titular de cargo político declarar, para efeitos fiscais ou extrafiscais, todos os rendimentos, incluindo os de proveniência ilícita, fica fora do alcance do tipo de enriquecimento injustificado, porque o património que adquirir durante o exercício do cargo não será «incompatível» com o declarado; já a aquisi- ção lícita de património que, por algum motivo, ainda não foi refletida nas declarações, preenche o elemento objetivo do tipo de ilícito, porque revela incongruência com os rendimentos e bens declarados. Naquela situação, a incriminação do enriquecimento injustificado não tem qualquer aptidão para proteger os bens da transparência e da confiança; nesta outra, sendo o património de origem lícita, não há bem jurídico carente de proteção. E o desvalor jurídico-penal da falta da declaração já se encontra amparado com outras prescrições legais, como as que estabelecem crimes fiscais (artigo 103.º do Regime Geral das Infrações Tribu- tárias) e falsas declarações em relação à declaração de rendimentos (cfr. n.º 2 do artigo 3.º da Lei n.º 4/83, de 2 de abril). Daí que a relação que se estabeleceu entre a ação e o bem jurídico não tenha sido um modo adequado de tutelar a transparência patrimonial dos titulares de cargos políticos, e por conseguinte, o tipo incriminador não está suficientemente credenciado pelos princípios da necessidade e da proporcionalidade ou proibição do excesso (artigo 18.º, n.º 2, da CRP). É claro que reconduzir o ilícito-típico à simples incongruência entre o património atualmente possuído e património anteriormente declarado, sem exigir a justificação da proveniência dos bens, significa construir um tipo incriminador com base na suspeita de que a incongruência tem origem em atos ilícitos. De facto, o que causa dano social é a inexistência de explicação satisfatória do modo como o património não correspon- dente aos rendimentos percebidos chegou à posse de quem exerce funções públicas. A ausência de justifica- ção do património possuído faz presumir a proveniência ilícita, uma presunção de violação dos deveres de probidade e transparência. Só que, como já foi apreciado no Acórdão n.º 179/12, a falta de justificação da proveniência dos bens como elemento constitutivo do crime sacrifica o princípio da presunção de inocência, o que não é constitucionalmente tolerado. – Lino Rodrigues. DECLARAÇÃO DE VOTO Acompanho a pronúncia de inconstitucionalidade quanto às duas normas incriminadoras visadas no pedido – que por partilharem a mesma estrutura típica consentem uma abordagem conjunta –, por violação dos princípios da necessidade de tutela penal, da legalidade e da presunção de inocência. Impõe-se, contudo, quanto ao princípio da necessidade de tutela penal, esclarecer que as razões que me conduzem a tal juízo não assentam na consideração de que os valores e interesses cuja prossecução é enunciada pelo legislador, com vista a assegurar a legitimidade jurídico-constitucional da decisão de política criminal em presença, não preexistam como bens jurídicos – alguns como valores-meios ou instrumentos – dotados de dignidade jurídico-penal, porque concretizações dos valores constitucionais expressa ou impli- citamente ligados aos direitos e deveres fundamentais. Em meu entender, os termos em que foi arquitetado o tipo impedem que se estabeleça o indispensá- vel nexo referencial entre tais bens jurídicos e uma (certa) conduta proibida, deixando essencialmente sem resposta a questão de saber o que de novo, ou mesmo como reforço – face ao arsenal jurídico-penal votado igualmente à luta contra a corrupção ou ainda aos crimes fiscais –, se pode retirar da norma penal incrimi- nadora, enquanto critério orientador do comportamento dos cidadãos. E, sem o poder determinar, não é

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