TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

40 TRIBUNAL CONSTITUCIONAL conferidos poderes de decisão que afetam a comunidade, encontram-se em situação fáctica de vantagem quanto à possibilidade de captura, em proveito próprio ou alheio, de bens que a essa mesma comunidade pertenceria fruir –, reunidas estão as condições para que se não possa sem mais «aplicar» a este tipo de crime todas as ponderações que foram feita aquando da análise do enriquecimento injustificado do «cidadão comum». Disse-se, a propósito deste último tipo de crime, que a formulação lassa da incriminação não permitia que se divisasse nela a prossecução de um qualquer bem jurídico que fosse digno de tutela penal; e que, se assim era em geral, também o seria em relação àquele particular bem que o legislador, no n.º 2 do artigo 335.º-A – textualmente reproduzido no n.º 2 do artigo 27.º-A – invocava como sendo o que, a seus olhos, justificaria a incriminação. Ora, é esta afirmação, relativa à manifesta impossibilidade de discernir no tipo incriminador o bem que é digno de tutela penal, que não pode ser repetida face à incriminação resultante do artigo 27.º-A. Seja pelo acervo de deveres que impende sobre o titular de cargos políticos e que não impende sobre o cidadão comum, e que se traduz na condição especial em que aquele se encontra de desvelo constante de toda e qualquer variação que ocorra em património que seja seu; seja pela posição fáctica em que o exer- cício de poderes públicos o coloca, posição essa que favorece empiricamente a ocorrência da hipótese de cap- tura para fins privados de bens comuns, a verdade é que, no que lhe diz respeito [ao titular de cargo político], a verificação da mera «incompatibilidade» entre o património «tido» e o «declarado» adquire, para o direito, um sentido qualitativamente diverso daquele que vimos poder ser atribuído à mesma «incompatibilidade», quando prevista no tipo incriminatório constante do artigo 335.º-A. E, dentro desse diverso sentido, não pode manifestamente excluir-se a hipótese do estabelecimento, pela ordem jurídica, de uma relação de arti- culação entre o «facto» incriminado – a discrepância entre as duas grandezas – e o bem valioso que se quis proteger. A previsão, estabelecida pelo legislador, de uma atual ou potencial relação de «danosidade» ou de «ofensividade» entre uma coisa e outra – entre a discrepância detetada entre o que se tem e o que se declara ou deva declarar, por um lado, e a capacidade que essa discrepância terá para erodir o bem jurídico valioso que é a confiança no Estado de direito e na democracia – não é coisa que, no contexto do artigo 27.º-A, apareça destituída de qualquer credenciação racional. E esta é uma conclusão à qual o Tribunal, que tem neste contexto um controlo limitado pela margem de liberdade conformadora do legislador (ponto 9), não pode deixar de estar vinculado. 6. No entanto, não basta, para que se legitime constitucionalmente uma nova incriminação, que seja ainda discernível num certo «tipo incriminador» um bem jurídico digno de tutela penal, ou que, pelo menos – em formulação mais adequada ao âmbito de controlo que é próprio do Tribunal –, seja impossível sus- tentar-se, perante certa incriminação, que os termos em que ela é feita não permite, manifestamente, que se divise um qualquer bem que seja dotado daquela dignidade. Imprescindível é ainda, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 18.º da CRP, que, perante cada nova incriminação que é decretada, um tal bem se mostre ainda carente ou precisado de tutela penal. Ou por outras palavras, usadas aliás no Acórdão: não basta que em cada nova incriminação se divise a intenção de preservar um valor social que, de acordo com a Constitui- ção, possa ser tido como merecedor do mais elevado grau de proteção jurídica; é ainda necessário que o fim almejado – a preservação de tal valor – não possa ser realizado por outro meio de política legislativa que não aquele que se traduz no recurso à nova intervenção penal. Ora a indeterminação, que permanece na construção típica do crime de enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos, não permite que se conclua que, através dele, se prossegue ainda um bem jurídico que seja «carente» ou «precisado» de tutela penal. Perante a ausência de uma qualquer indicação precisa de qual seja, no caso, o «comportamento» punível, fica-se sem saber o que acrescenta o novo tipo incriminador ao conjunto de normas já existentes, e já dispostas a prosseguir o mesmo fim valioso que o artigo 27.º-A se propõe realizar. E sem que se saiba o que acrescenta a nova intervenção penal ao conjunto de medidas já previstas para a preservação da confiança no Estado de direito democrático não pode afirmar-se a sua necessidade.

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