TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015
39 acórdão n.º 377/15 de se afirmar que o bem protegido pelo legislador será ainda, perante a formulação típica que é desenhada, um bem «carente» ou «precisado» dessa mesma tutela. 2. A impossibilidade de se divisar na concreta formulação do tipo criminal previsto pelo artigo 335.º-A do Código Penal um qualquer bem jurídico que seja digno de tutela penal só surge justificada, a nosso ver, pela consideração que segue. Ao cidadão comum, que é o agente típico da infração prevista no artigo 335.º-A, não se conferem especiais poderes de decisão que afetem a vida da sociedade política como um todo. Por isso mesmo, não se encontra ele sujeito a um qualquer dever, que o oponha a toda a comunidade, de perante ela desvelar permanentemente as vicissitudes por que passe a qualquer momento e por qualquer motivo o património que adquira, detenha ou possua. O dever que impende sobre qualquer membro comum da sociedade polí- tica, que é constitucionalmente fundado e que deve ser prestado perante a autoridade estadual, é o de pagar impostos (artigo 103.º, n.º 3, da CRP), e, consequentemente, de proceder às declarações fiscais nos termos em que o impõe a lei geral tributária. Do incumprimento desse dever decorrem as consequências que a ordem jurídica, nos termos dessa mesma lei, já prescreve. Ver no incumprimento desse dever – traduzido em qualquer incompatibilidade ocorrente a qualquer momento entre o património «tido» e o «declarado» ou que deva sê-lo – uma ofensa, atual ou potencial, à preservação da ordem constitucional, porque à manuten- ção da confiança no Estado de direito e na democracia, é algo que, por se tornar insuscetível de ser racional- mente credenciado, se revela à evidência como manifestamente excessivo. 3. Todavia, e diversamente do que sucede com o cidadão comum, o agente típico do crime de enri- quecimento injustificado, previsto no artigo 27.º-A da Lei sobre os crimes da responsabilidade dos titulares de cargos políticos, não está apenas adstrito a uma obrigação, decorrente do dever fundamental de pagar impostos, de proceder àquelas declarações de património que sejam prescritas pelas regras gerais das leis tributárias que sejam aplicáveis. Muito mais do que isso, sobre os titulares de cargos políticos impende um dever especial, fundado na natureza própria do múnus que exercem, de desvelar perante a comunidade todas e quaisquer vicissitudes por que passe o seu património durante o período de tempo correspondente ao exercício de funções. A conclusão, que induz a que se tenha em conta a especialidade da relação que, por esta via, se estabelece entre os titulares destes cargos e a comunidade política no seu todo considerada, não pode deixar de ter consequências quando se analisa a conformidade do prescrito no artigo 27.º-A com os padrões legitimadores da constitucionalidade de qualquer nova incriminação. 4. Na verdade, não cremos que seja possível transpor para este novo tipo de crime todas as considera- ções que já foram feitas a propósito do enriquecimento injustificado do – chamemos-lhe assim – «cidadão comum». Uma vez que o agente típico da infração descrita pelo artigo 27.º-A vive em contexto juridicamente marcado pela obrigação de desvelo de todo o seu património perante a comunidade que serve, qualquer «incompatibilidade» ou incongruência que se detete entre aquele último e os rendimentos e bens declarados ou que devam sê-lo traduz logo, por si própria e em si mesma, uma situação merecedora de um certo e deter- minado juízo de desvalor jurídico. O espetro da diversidade de situações da vida que se pode albergar sob o tipo do enriquecimento injustificado, quando previsto, enquanto crime, para o cidadão comum, estreita a sua amplitude quando o mesmo tipo é previsto para ser aplicado, apenas, a titulares de cargos políticos. No que a estes últimos diz respeito, qualquer divergência que se verifique ocorrer entre o património «tido» e o «declarado» [ou que deva sê-lo] terá para o direito, só por si, um significado próprio, na exata medida em que será, também só por si, sinal de incumprimento do especial dever de «transparência» a que a ordem jurídica obriga o agente. 5. Se a este dado, que releva antes do mais da ordem jurídico-constitucional, se juntar um outro, já assinalado, e que releva da ordem da observação empírica – os titulares de cargos políticos, aos quais são
Made with FlippingBook
RkJQdWJsaXNoZXIy Mzk2NjU=