TRIBUNAL CONSTITUCIONAL Acórdãos 93.º Volume \ 2015

37 acórdão n.º 377/15 da imposição deste «dever de transparência», de incidência essencialmente patrimonial, a quem decide politica- mente [publicamente], pode encontrar, sob o ponto de vista textual, fundamento bastante no já mencionado artigo 117.º, referente à «especialidade» do estatuto dos titulares de cargos. O seu fundamento axiológico geral, porém, encontrar-se-á porventura na formulação do seguinte princípio: se ao legislador incumbe evitar que a confiança – entendida como acima se entendeu, enquanto elemento ético que sustenta o Estado de direito democrático (cfr., supra, ponto 13) – sofra erosão por causa da disseminação de práticas que se traduzam no aproveitamento privado de bens ou vantagens que a toda a comunidade pertenceria usar ou fruir, sobre quem dispõe de poderes de decisão – encontrando-se assim, pela natureza das coisas, em condições fácticas even- tualmente favorecedoras da ocorrência daqueles atos ilícitos – deve pesar um especial ónus de «transparência» patrimonial, sem que com isso se deva entender que injustificadamente se invadem esferas reservadas de vida, própria ou de terceiros. Assim é que a Lei n.º 4/83, de 2 de abril (alterada por último pela Lei n.º 38/2010, de 2 de setembro), que dispõe sobre o controlo da riqueza dos titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, manda que esses mesmos titulares apresentem no Tribunal, no prazo de 60 dias contado do início ou da ces- sação de funções, declaração de rendimentos, património e cargos sociais. Tal é suficiente para que se conclua que sobre aquela categoria de pessoas que segundo o artigo 27.º-A serão os agentes típicos do novo crime de enriquecimento injustificado pesa um dever geral, e de cumprimento constante, de «transparência», dever esse que se traduz numa obrigação especial de revelação de quaisquer vicissitudes por que passe o seu património. Semelhante dever não impende sobre quem não exerce quaisquer cargos públicos; e da justeza da sua imposição não pode duvidar-se, atendendo ao que decorre do sistema da Constituição. 18. Não obstante a conclusão, haverá desde já que esclarecer que do estatuto constitucional dos titulares de cargos políticos nenhuma ilação se pode retirar que altere as ponderações já feitas pelo Tribunal a propósito do ilícito criminal que o Decreto da Assembleia, através do artigo 335.º-A, pretendia aditar ao Código Penal. No artigo 27.º-A, que o mesmo Decreto pretende aditar à lei sobre os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos, formula-se uma incriminação típica que é em tudo homóloga àquela que consta do referido artigo 335.º-A. O crime de enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos só se distingue do outro crime com o mesmo nome, previsto para ser aplicado a qualquer cidadão («quem, por si ou por interposta pessoa…»), pela especial condição do agente que o comete e pela maior severidade das san- ções que lhe são aplicáveis. Em tudo o resto, a estrutura dos dois tipos incriminadores permanece idêntica. Sendo assim construído o tipo constante do artigo 27.º-A, todas as questões que se colocaram a propó- sito do seu homólogo (o previsto no artigo 335.º-A, a aditar ao Código Penal) mantêm inteira pertinência. Desde logo, o enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos permanece, tal como o crime homólogo perpetrado pelo «cidadão comum», um crime de situação ou de estado de coisas. Uma vez que a formulação da incriminação se esgota na verificação da «incompatibilidade» entre a riqueza que se tem e aquela outra sujeita a declaração, também aqui o legislador, com essa formulação, se afastou das exigências que para ele decorrem do disposto no n.º 1 do artigo 29.º da CRP, uma vez que se omite – tal como se omitiu na redação do n.º 1 do artigo 335.º-A – a especificação do concreto comportamento, comissivo ou omissivo, que constitui o objeto da censura penal. Além disso, mantém pertinência a questão relativa à observação do princípio constitucional da pre- sunção de inocência. Também aqui será de concluir que se considerará consumado o crime pela reunião de dois elementos: património detido, possuído ou adquirido por um lado; incompatibilidade entre este e aquele outro sujeito a declaração, por outro. Tal como vimos suceder quanto ao preceito a aditar ao Código Penal, o cerne da censura do legislador encontrar-se-á, também quanto ao enriquecimento injustificado dos titulares de cargos políticos, na verificação de uma «incompatibilidade» entre duas grandezas. Assim, a con- clusão a extrair será a mesma que se obteve aquando da análise do artigo 335.º-A: tal significa que, logo na formulação do tipo criminal e pelo modo como ele foi construído, se contrariou o princípio da presunção de inocência (artigo 32.º, n.º 2, da CRP), entendido, na sua dimensão substantiva, enquanto vínculo do próprio legislador penal.

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